30.6.16

de repente

de repente esfriou. de repente eu me vesti. de repente eu não sei o que estou fazendo. pera. isso eu nunca sei. de repente eu me assustei. de repente nada. tudo na minha vida é lento. sou um paquiderme, eu disse.

como devagar, ando devagar, me mexo devagar. quase em câmera lenta vez em quando o mundo passa na minha frente. anos pra decidir. anos para fazer. anos para mudar. de repente.

agora estou eu. de repente onde eu me sinto confortável. de repente com as coisas andando. de repente com amigos que eu gosto de ter. de repente com um caminho que me interessa. de repente dando oi para ele. de repente. nada de repente.

e de repente me vem um eco do passado. de repente me assusto. de repente saio contando. de repente não era nada e volto pro trabalho.

de repente volto a ouvir essa música. de repente não é mais sobre você. de repente esse vazio não existe mais. porque de repente ele virou cicatriz. e cicatriz também é parte da gente.

27.6.16

urgência

hoje acordei diferente. sem urgência. eu sei. isso deveria ser algo tranquilizante. mas não é. urgências criam ação. ações enterram angústia. eu não preciso agir e não sei como fazer isso. não tem nada que eu precise fazer nas próximas horas. tá. tem trocar o lençol, lavar roupa, faxina. mas isso não é urgente. isso é diário. eu falo de urgência.

acho vez em quando que escolho as pessoas que preciso na vida por essa noção de urgência. cada um de nós coloca ela em uma coisa, repara. mas a gente sempre tem. e tem quem diga que isso é paixão. não sei se é. é um chamado. uma necessidade. uma urgência. pode ser por um livro. uma religião. uma pessoa. eu escolhi ter urgências. ou elas me escolheram. e quando elas saem de mim o vazio que fica é muito assustador. e preenchido com outras urgências.

na vida, eu aprendi a domar as urgências. a pedir que elas me esperem, que tenham seu tempo. aprendi que algumas amigas seguem sendo urgentes como eu. e por isso sigo querendo estar ao lado delas. porque mesmo com todo o tempo. toda a distância. ainda podemos ser urgentes juntas. ainda podemos nos abraçar e reconhecer que nos demos a mão por isso. porque somos em busca. não uma busca perdida. uma busca por algo que se adeque a essa urgência.

quando a gente perde isso. quando a urgência desiste da gente. é um pouco de vida que sai. a sensação pra mim é essa. de algo que esvazia. preciso inflar de novo. puxar o ar. segurar o ar como um balão. em tensão. tensão de superfície. onde mantenho tudo com o ar. como a estenose que nasceu comigo, a tensão de puxar o ar pra dentro quando ele falta.

23.6.16

afeto

uma vez, num exercício de retórica na pós de interpretação, tiramos papéis para falarmos sobre um assunto. eu tirei afeto. e uma colega achou que fazia sentido. na minha cabeça de quem leu demais, não entendi porque para ela fazia sentido. afinal, afetamos uns aos outros o tempo todo. ela quis dizer que eu era afetuosa, gentil. que eu me preocupava com as colegas, o que não era comum.

hoje fui almoçar com uma colega de turma. da escola. eu acho que não sei dizer quando eu não conheci essa turma. éramos poucas. poucos. éramos quase todas mulheres. éramos unidas. éramos felizes. tanto quanto adolescentes podem ser felizes. falamos das amigas em comum. e eu percebi de novo. que eu mantive alguma ideia de onde estão as colegas. eu nunca fui a melhor amiga de todos. mas eu sou ligada aos afetos. eu me apego ao que me afetou. eu sei onde estão os colegas. mesmo sem falar com eles todos os dias. e essas pessoas são amigas. mesmo sem falar todo ano.

uma está em brasília. outra em paris. outra aqui do lado em laranjeiras. um em são paulo. somos todas uma só, ela disse. a gente aprendeu com a gente a se portar nesse mundo, ela disse. você não julgava as nossas loucuras ela disse. e você sempre foi careta. você defendia as loucuras da gente, ela disse.

eu me senti acarinhada. e sem saber porque. depois eu entendi. existe algo em amizades de mais de vinte anos. algo que a gente não pode definir. algo que a gente não pode controlar. a gente sabe quem o outro é. e o outro muda. corta cabelo. cresce cabelo. casa. separa. tatua. muda. mas aquele afeto ali. aquele original, o que criou a gente adulto. tá aqui, na mão. renasce se encontra.

encontrar maria foi reencontrar comigo. foi lembrar o que a gente era. o que a gente ainda é. somos muitas. somos poucas. estamos aqui, sempre, umas pelas outras. uns pelos outros. não vamos a lugar algum. e não mexa conosco. a gente não anda só. a gente é multidão. de poucos, mas multidão. e é sempre bom saber disso. que eu tenho elas. eles. e elas me tem. eles.

eu aprendi que não sou sozinha.

17.6.16

jeito

daí eu fui no gato curioso lá. e no gato curioso me perguntaram se o brasil tem jeito. e eu não quis responder pra não ser grossa. e insistiram. falando em república de bananas e tals. e eu respondi e enfim. me alongando.

eu não sei o que é ter jeito. porque o ter jeito implica em que precisa ser dado um jeito. que está errado do jeito que está. eu não acho que está errado. não errado como quem me perguntou qual o jeito. eu acho que o brasil é um país que foi colônia e que vive, ainda hoje, da violência e da necropolítica resultantes de não sair do ciclo de violência imposto pela metrópole. pera. me explico. eu li fanon e ainda não me recuperei. eu li mbembe. eu li um bando de coisa. e eu vejo as coisas pelos olhos de quem eu li. porque eu faço isso vez em quando. e o tal ciclo de violência. ele pode ser quebrado quando a gente cria algo novo, que não é o mesmo que a colônia era.

o brasil ainda é a colônia. como o são angola, moçambique, nigéria, colômbia, argentina... somos todos a perpetuação dos esquemas. a continuação do trauma da violência. temos todos a capacidade de criar algo novo, não ocidental, miscigenado não mais como a metrópole quis que fosse. eu acredito nessa capacidade de elaborar que a cultura pode nos dar. não sei economicamente. não analiso economicamente, porque não sei. o que posso falar é no que acredito. culturalmente. porque a cultura não ocidental a gente tem. falta é acreditar nela de verdade.

15.6.16

ser menina

quando eu era pequena. quer dizer. quando eu era menor (isso é um amigo da família que diz. que eu nunca fui pequena, não posso falar inverdades). eu amava um texto chamado mulherzinhas. louisa may alcott. teve uma peça de teatro com ele ali no shopping da gávea. mulherzinhas.

eram 4 personagens, crescendo nos eua da guerra de secessão. eram 4 mulheres, claro. eu lembro que na peça a sílvia buarque era uma delas. a que morria de tuberculose. mas ela era a personagem fraca. a que eu não gostava. eu gostava da jo. não lembro quem fazia a jo. no cinema era a winona ryder, acho.

a jo, gente. ela não queria ser menina. ela queria ser jornalista. e meninas não podiam ser jornalistas. a jo cortava os cabelos para vender porque a família tava dura que o pai tava na guerra. a jo era tudo que eu queria ser. talvez a jo seja um pouco a minha mãe e eu seja a luiza, morrendo de tuberculose.

eu me identificava com a jo. eu não entendia porque eu tinha de ser menina. apesar de ser brutalmente vaidosa. e de ser de uma família que jamais me impediria de ser o que eu quisesse ser. inclusive solteira. enfim

tudo isso porque me perguntaram sobre feministas e autoras que eu curto e eu lembrei que. louisa may alcott. leiam sobre ela. faz é muito tempo. ela tava aí escrevendo sobre meninas que não casam e vão pra cidade virar jornalistas. faz é muito tempo, e as pessoas precisam lembrar disso. que nós, mulheres, existimos nesse mundo de homens. e hoje eu ouvi um colega falar "eu penso nas mulheres da europa, que eram casadas, a não ser que fossem aristocratas, não eram cosmopolitas" e peço que lembrem de jo. que era um alter ego de louisa. lembrem que no séc XIX nós já existíamos.

chega de fingir que as mulheres só existem como indivíduos a partir da segunda metade do séc. XX. isso também é invisibilização. a gente sempre teve aí. em menor número talvez. mas sempre teve. e não vamos a lugar algum e vamos estar cada vez mais. cortando nossos cabelos. usando calças. deixando os cabelos longos e usando saias. a gente não vai a lugar algum, amigos. se acostumem. somos aqui. pertencemos aqui. nossa minoria política vai continuar fazendo barulho. continuar se tornando isso daqui que é o outro de vocês. um dos outros. vocês, homens brancos ocidentais. vocês são um universal que cada dia existe menos. nós, todos os outros. nunca não existimos, mesmo contra toda a sua narrativa de universalidade. nós aqui estamos. e não esperamos ninguém.

música

não sou uma pessoa musical, ou ao menos o que se costuma chamar disso. inclusive, sou das raras pessoas que não trabalha ouvindo música. na verdade, isso é porque eu começo a digitar a letra da música. melhora. se a música é em inglês, digito em português. se é em português, digito em inglês. daí eu não sou uma pessoa musical. 

enorme introdução para o nada. para variar. sou prolixa. engraçado que não sou em trabalhos acadêmicos. onde eu deveria ser. enfim. outra enorme introdução. tudo isso só para falar que: hoje eu tive uma aula que não deveria ser nada além das outras aulas. e falamos sobre o livro Alzira está morta e sobre África e Salvador e Atlântico Negro e diáspora, essas coisas que fazem parte do que eu tô tentando entender do mundo. e daí a orientadora falou dos blocos afro. algo que eu soube um dia, acho. e anos 70 e 80 e Salvador efervescente. e a importância do Egito negro para tudo isso.

saí da aula faz 3 horas já. ainda me pego cantando "mara mara mara maravilha ê/ egito, egito ê" e me pego rebolandinho aqui na cadeira.

resumo da ópera: como os deuses, não acredito em estudos que não dancem.

13.6.16

estreitamento

estenose quer dizer estreitamento. nasci estreitada. provavelmente por esforço no parto, dizem. no parto que não pode ser natural, que foi emergencial e no susto. e sobrevivi. com um nó no pescoço (literal, se eu fico cansada ele reaparece). umas manchas de nascença (que aparecem quando eu fico irritada/cansada, na testa, na nuca. umas bolotas vermelhas). e uma estenose pulmonar. vulgo sopro no coração. que hoje em dia é assintomática.

minha mãe vai ficar muito impressionada. e dizer que não sabia que eu tinha ficado tão mexida com isso. que não achava que eu tivesse uma infância tão diferente. e nem tive. eu era a mais velha de 9 irmãos. isso em si era mais exótico do que ser cardíaca. mas eu era cardíaca. eu não conseguia nadar tanto quanto os irmãos, nem tão rápido. eu não conseguia aguentar o frio. eu gripava. eu tenho um cardiologista desde que nasci. quantas pessoas podem falar isso? eu tenho de ir todo ano ao cardiologista desde que nasci. mesmo sendo assintomático.

na verdade. eu ainda gripo. eu ainda acho a sensação de gripe a mais infernal que um ser humano pode viver. eu não sei lidar com isso. eu odeio lidar com isso. a falta de ar me lembra a hora em que o meu corpo desiste. meu corpo desiste. o de vocês desiste? ele me avisa que vai parar e para. meus desmaios, no entanto, não são por esforço. são por pressão. o meu corpo compensou muito bem a estenose. eu tenho pressão muito baixa. quando tô irritada, chega a 12 por 8.  tergiverso, pra variar.

meu corpo me avisa que chega. e cai gripado. e eu mal consigo levantar e fazer um chá. eu odeio essa sensação. de peso em todos os membros. de olhos sempre fundos. de ar sempre faltando. uma hora passa. eu vou ao cardiologista todo ano. eu não tenho nada.

11.6.16

viagem

sou dessas que precisa sair. para voltar. já disse algum dia aqui. sou apaixonada pelo rio desde pequena. apesar de ter morado fora quando pequena. fora do rio. em fortaleza. eu volto. preciso do rio como preciso de mim mesma. acho que me confundo com ele. com o por do sol na praia. com o samba nas quadras. com a feira na rua. depois de muito tempo sinto falta até da av. brasil, gente. toda a confusão de gente. de caras fechadas e de abraços abertos. de gente chiando. ontem mexeram comigo aqui. que o meu chiado não nega. porque eu chio falando portunhol. ixpetáculo.

eu saio e venho tentar ver o outro. eu preciso tentar analisar o outro. como eu me analiso. eu demorei a me tornar acadêmica. pesquisadora. mas eu entendo que é o que posso fazer. olhar. ver. pensar. só funciono assim. posso ir ao futebol. adoro beber cerveja. me sinto bem demais no baile charm. amo até touradas, vejam vocês. nada é acrítico. nada é do nada. tudo eu posso discutir e até rever minha posição. tudo é passível de ser compreendido.

dito isso. nada é tomado pelo seu valor de face. não acredito na primeira coisa que ouço. vou pesquisar e tentar entender. tô aqui com uma gata cega e surda no colo. falando com amigos pela internet. revendo um trabalho. conversando com gente daqui sobre temas que me afligiram. os apagamentos. os pactos fundadores das nações. tentando entender o dos outros. a mim interessa isso. é parte da viagem. é parte do conhecer. não conheci nada se só vi o lado bom. o rio é uma merda. mas é maravilhoso. e assim falo de muitos lugares.

aqui na argentina, reitero, me incomoda o extremo nacionalismo e o apagamento dos negros. mas eu estudo isso. eu terei isso percebido onde quer que eu vá. é o meu jeito de poder ir. não digo que isso não seja um problema em outros lugares. mas é aqui. comprei uns livros sobre. (o mundo, ele existe nos livros, vocês sabem, né?) e vamos ver o que eles dizem. segunda volto ao rio e teremos de volta nos meus olhos peles diferentes. e verei de novo barulho na rua. e gente de perna de fora. e me sentirei em casa. porque toda análise pra mim se borra em casa. eu tenho meu ninho. e fico feliz. ainda preciso ir pro que analiso. quem vem comigo andar a áfrica?

6.6.16

coração

sexta me queimaram a mão com cigarro. fazia talvez uns dez anos que eu não me colocava assim. num lugar em que podem queimar a minha mão com cigarro. eu lembro ainda quando minhas saias tinham todas furos de cigarro. meu e das amigas. das noites dançando. na dr smith. na sweet home. na bunker. na bang. no ballroom. na fundição. noites sem lei do cigarro em que o cabelo fedia a fumaça a semana inteira. noites dançando de olhos fechados e sorriso solto, com as bolsas no chão. amigo chamava de ebó de discoteca.
dançar deixa o corpo da gente mais inteiro. sabe que eu nem sinto falta de falar quando eu danço? e isso quer dizer alguma coisa, eu prometo. eu paro de falar quando danço. eu rio. eu gosto de dançar em par. mas o cara tem de saber guiar. porque eu sou ruim de ser guiada. nem todo mundo consegue. daí eu descobri esse lugar. ao ar livre. com músicas que eu curto dançar. e eu me sinto ali como me sentia nas festas em que eu era jovem. podendo fechar os olhos e podendo me queimar. porque fechar os olhos é autorizar o mundo a acordar a gente desse transe. e ele acorda.
e minha mão queimou. e hoje eu olhei pra bolha que ficou. acinzentada, como sói acontecer com bolhas criadas por cigarros. e achei que ela tem forma de coração.
então. queria dizer. que me senti meio que acalentada por isso, por mais irracional que possa ser me sentir reconfortada pela forma de uma bolha. mas um coração pode segurar as nossas pernas. e tendo um que veio com defeito. é sempre bom ter um externo.

4.6.16

nada

não foi nada. um esbarrão na rua. e as coisas parece que são alguma coisa vez em quando. que poderiam ter sido. mas não foram. o momento não é de nada ser. é dessas incertezas. mentira. a vida tem me dado certezas. uma delas é de que eu sou sozinha. não sozinha triste. não sozinha maluca. sozinha. eu curto me trancar e não abrir a boca. não sair de casa. deitar no sofá e ficar ali. eu curto um bando de coisa que não dá pra fazer se eu desistir de ser sozinha. e não quero abrir mão disso. não agora. não quero colocar em causa. discutir. conversar. ceder. quero essa zona que tá aqui em volta e aqui dentro.
mas o esbarrão. a mão doendo. o olhar. me fizeram ficar assim. feito alguém que quer ceder essa zona e abrir espaço. e não foi nada e não será nada. mas eu lembrei por um momento que tem um lado que acha bom. o par. as horas. o encanto. que sabe que não tem nada demais isso. que o prazer é bom. eu tô aqui enrolada. pensando em mil coisas. e de repente essa lembrança de que pode ter o encanto. desestabiliza tudo. e o chão volta a sair um pouco de debaixo dos pés da gente. como que a gente faz?

31.5.16

conceitos

sobre diferenças na verdade. conceito pode partir de generalização, mas não é a mesma coisa. conceito é construído após análise, discurso, debate, construção. conceito não é tão vazio quanto parece. talvez seja difícil acessar um conceito sem conhecer o debate que o antecede. mas é pra isso que seguimos aqui. sendo acadêmicos chatos. tentando explicar. repassando. estudando. relendo. debatendo. tô aqui falando dos conceitos todos. com amigos. comigo. para poder depois explicar. repassar, sair do mundo da academia.

dito isso. o erro é meu e dos meus se um conceito é mal compreendido. é tratado como mera generalização. é tratado com raiva. com desprezo. o erro é meu e dos meus quando a intelectualidade é vista como um entrave a algo. quando nós somos o problema que atrapalha a vida. e não a chave que ajuda a entender.

deixa que o pensamento abra a porta. que o conceito te mostre outra forma de ver a vida. que as palavras possam ter mil significados. que a ressignificação te faça ver outros arco íris. deixa que a provocação da palavra te faça trilhar outro caminho e que isso seja bom. tão bom quanto falar com um amigo. quanto beber uma cerveja. quanto malhar ou ir na praia. deixa que o raciocínio e a dúvida te coloquem em contato com o que você não conhece. que o mundo seja maior. o mundo é sempre maior do outro lado, acredite. acredita que reler e tentar entender o ponto de vista de quem criou a teoria pode te fazer até seguir discordando. mas entender de onde veio. e entender é libertador. saber as regras deixa a gente vendo a estrutura do mundo. tenta ver. é meio como a escolha do neo. a gente quer a azul ou a vermelha? não precisa ver toda a estrutura do mundo. ninguém vê toda. mas é bacana saber que ela existe.

30.5.16

família

detesto família. não sei lidar. sou uma pessoa de amigos. aquariana, alguns diriam. chata, digo eu mesma. nem sempre tenho o que falar. nem sempre me sinto muito à vontade. mas era casamento do meu irmão. e nem sempre eu caso um irmão. alguns vão dizer que, com sete irmãos, isso nem é verdade. mas tergiverso. é meu irmão. e é caçulinha, sim. apesar de ele ser o mais velho, pra ele mesmo. mas é mentira. a mais velha sou eu. e caçulinhas são eles todos. pra vida inteira, amém. darei bronca, abraçarei e direi que são lindos. podem se acostumar, se não se acostumaram ainda. mesmo que bissexta, num desisti não desse papel. apesar do outro irmão ter dito "na verdade família pra você é só a nuclear. você ignora o resto, apesar de entender. tem mais ligação com os amigos"


voltei pro aquariana. e pior que é verdade o estereótipo aqui. os amigos que carreguei pro dia a dia. os que me conhecem o meu trabalho. os que eu seguro a mão se achar que precisam. os que eu não deixo de ver por nada. são meu porto seguro muito mais do que a minha família. vejam bem. eu gosto deles. eu só não tenho essa ligação atávica. eu acho lindo eles terem. enchem meus olhos de lágrimas com tanto carinho. eu percebo que o afeto entre eles e comigo é muito real. e eu quero poder retribuir. só não sei fazer isso. 

e daí eu que nem ia falar tanto. queria só dizer que. as diferenças nunca cessaram. mas elas são boas. e eu posso ser capaz de um amor que não é o que eles esperam. não é derramado. tátil. de riso frouxo e corpo aberto. essa não sou eu. eu acho isso lindo. eu admiro isso neles. eu vivo dentro da cabeça e pelos dedos nos teclados. meu derramamento é aqui. escondido. sem avisá-los, inclusive, idealmente (a timidez, gente, a timidez vez em quando supera tudo, menos essa exposição daqui)

eu posso te amar. e não sei se você algum dia vai saber. porque o mundo é bom aqui. no meu ninho. nos meus dedos. 

27.5.16

manda uma mensagem

outro dia me falaram. na verdade, faz é tempo. e eu perdi um pouco de carinho por muita gente. mas passou, porque eu tendo a tentar seguir e sacudir o mal estar pela vida em sociedade. enfim. me falaram dos grupos de whatsapp só de moços. homens ficam trocando. fotos de moças nuas. impressões sobre as moças que já viram nuas. impressões sobre seus times de futebol.

a gente fica ali. entre um jogo do vasco e um do botafogo. a gente é. nitidamente. tão importante ou tão gente quanto uma boa defesa. ou um enorme frango. a fala ainda veio com a informação de que comentaram que uma menina não era boa. de cama, digo. atire a primeira pedra quem nunca disse que deixou de sair com uma pessoa porque era ruim, eu pensei.

mas com esses acontecimentos eu tenho pensado. você tem quantas fotos de gente pelada no seu celular? que te entregaram elas em confiança? você mostra? a gente pode? onde a gente tá nisso? eu ando insistindo na banalização. não é banal a confiança que a gente deposita no outro na hora do sexo. não devia ser.

não estou dizendo aqui que sou santa. que nunca errei. mas a gente pode sentar e pensar. em estruturas. em por que eu fazer isso soa a uma subversão e um homem soa a uma manutenção de status quo. porque de qualquer jeito é uma ruptura e uma banalização da intimidade. e deveria ser combatido e não incentivado.

então. sabe o grupo? apaga. sai de lá. para com isso. percebe que é manutenção de estrutura de opressão, sim. respeita. acarinha. o outro. o que você quer ou quis perto. mesmo que por uma noite. a noite inteira. o dia. duas horas. uma semana. cuida sim. não expõe. não quebra o acordo. cada quebra de acordo é um passo pra toda essa coisa absurda que tá tão em pauta, que a gente chama de cultura do estupro. é a banalização do corpo do outro como coisa. não é coisa não. é gente.

pimenta

quando eu era pequena. tinha empregada em casa. é, eu sei. eu hoje em dia discuto isso e tudo. mas eu era pequena. e minha mãe tinha 4 filhos. e era separada do meu pai (que era rico, coisa que ele ainda é vez em quando, não sempre que é pra não enjoar, acho). e era isso. fazia parte do pacote, acho. enfim. eu conversava com ela. via televisão. conheço os filhos. na verdade, até hoje ligo nos aniversários vez em quando, apesar de não ter mais relação de trabalho. ficaram de alguma forma na vida da gente. mas esse não é um texto sobre relações de trabalho e o problema da herança escravocrata nem sobre casa grande e senzala e o brasileiro cordial. talvez seja perto disso.
um dia, numa conversa (que minha mãe jura que acha que eu era mais velha. minha mãe esquece que meu pai faliu eu tinha 12 anos. depois disso, não tinha empregada), ela começou a contar causos do bairro onde morava (engraçado, não lembro qual? sei que hoje ela mora em jacarepaguá. taquara). daí. um deles, que eu nunca, jamais, esqueci, era sobre uma moça que foi traída. e foi traída e contratou dois rapazes. e fez um vidro de pimenta. e os dois rapazes colocaram o vidro de pimenta na vagina da moça que teve um caso com o marido da primeira. e eu, pequena, perguntava “mas e o útero dela? levaram pro hospital? isso deve doer? e por que não mandou fazerem isso com o marido que traiu?” e desfiava mais mil perguntas. que deixaram ela sem graça, sem saber responder.
a violência está entranhada na sociedade da gente (falei que não ia comentar casa grande e senzala nem colonialismo. menti). faz escadinha. quem pode um pouco mais economicamente ou socialmente faz questão de sadismo com quem pode menos. a gente naturalizou isso e acha que faz parte. não faz. não deveria fazer. o colonialismo, dizem, é fundado na violência. a única linguagem que conhecemos.
a menina. que foi violentada por 30 rapazes. foi porque podem, porque estão um pouco acima. a menina. que levou pimenta na vagina. também foi porque a outra podia. estava um pouco acima. é tudo sintoma da mesma sociedade que se baseia na violência e não sabe andar depois dela. são histórias com 30 anos de distância. uma particular, até onde eu saiba, nem saiu no jornal que a moça teve seus órgãos reprodutores queimados por pimenta. é tão banal que não saiu no jornal. a violência pode ser filmada hoje em dia para ser mais banalizada. 
quero crer, porque sou das que busca copos meio cheios, que hoje em dia podemos ainda, apesar da tentativa de guinada a um não falar, discutir e falar sobre essa violência. tentar ao menos explicar que não. que não temos direito sobre o corpo das mulheres. de nenhuma mulher. que o corpo de cada uma é de cada uma, que não podemos violá-lo. e que isso não é e não pode ser banal.
quero crer. que 30 anos depois. preciso crer. que nós mulheres estamos começando a entender isso. que somos uma. que estamos juntas contra as violências que nos colocam por baixo de tudo. quero crer que a pimenta hoje não seria dirigida a outra mulher. que a luta é por todas. sem diferença. que a violência pode ser instrumento e não mais única linguagem conhecida.
eu até hoje tenho pesadelos com essa história da pimenta. e não foi comigo. não consigo sequer imaginar como seria se fosse comigo. quando é.

1.11.15

ressaca

o dia seguinte. ai. que dor de cabeça. que dor no peito. achei que eu nunca mais ia sentir isso. tem uma hora que a gente acha que se livrou. do aperto. da vontade de se cortar. da sensação de inadequação. não tava ali, de anfitriã do casamento alheio? as amigas confiando nela? o trabalho no doutorado saindo direito? mas voltou. enfim. ao menos Júlia e Suzana estavam felizes. isso foi bacana de ver. de perceber. sempre bom amigos felizes. acalma um pouco. pera, a ressaca.

– oi, Marta. não, não dormi direito. que foi?
– cara, fiquei preocupada. você sumiu da tua própria casa, porra!
– não podia ficar. desculpas.
– tem nada que pedir desculpas. onde você tá? eu enrolei a Júlia pra ela não perceber. mas ela sabe, ela não é idiota. liga pra ela depois e diz que você tá viva, sabe? o João lá, amigo dela também perguntou por você. mas ele foda-se.
– cara. não tava dando pra mim. desculpas. deu ruim.
– onde você tá? vou te buscar.
– então. vim pra minha mãe. não tô dando conta. não sei quando volto.

não tá dando. preciso ficar só. o João era um querido. mas visivelmente ainda pensava na ex mulher. eu não posso dar conta disso agora. eu mal dou conta do meu ex ainda. será que ele achou o mesmo de mim? não dou conta de nada. da minha vida. não posso dar conta do outro agora. queria algo simples. assim como esse encontro repentino da Júlia com a Suzana. como era rir com a Júlia quando elas conversavam besteira. mas nada andava simples. mentira. tinha coisas simples. a parte de trabalho andava simples. o bizarro é que nunca foi na vida. o problema é essa solidão absurda e insuportável que vinha de vez em quando. e estar no meio de tanta gente quando sentia isso era um problema. ela precisou sair da festa. ai, lá vem o telefone de novo.

– porra, Mariana!!!!
– ai, Júlia, desculpas
– fiquei preocupada, eu sei que você some, que foge, tudo. mas da sua casa, cara?
– não aguentei. era coisa demais que eu não sei fazer. que eu não sei ter. que eu não consigo criar.
– amiga, para de aumentar as coisas. era uma festa. de um casal de namoradas. só isso. que eu quis compartilhar contigo. porque você gosta de estar presente. não era pra você se sentir mal.
– gata. deixa. já passa. agora eu preciso ficar no casulo. mas eu tô bem. sem um puto, vou ter de entregar o apartamento, essas coisas, mas tô bem.
– como assim entregar o apartamento? por que eu não tô sabendo disso? e o pobre do João? convenci o menino a ir, Mariana.
– mas Júlia, ele tá recém separado. ainda tá com a ex na cabeça. eu não sei competir. ainda mais com um fantasma desses. a mulher era linda, inteligente, compreensiva, educada... não sei competir. até porque tenho a sutileza de um paquiderme. e eu não quis atrapalhar a tua festa com os meus problemas.
–...
– que foi?
– amora, tô indo aí. eu que me caso e você que surta. tô indo aí.


10.9.15

João
- não, Julia, não dá pra chamar mais gente.
- mas...

Julia estava querendo chamar cem pessoas prum quarto e sala. Entendo a vontade de comemorar e tal. Mas não cabe, cacete. E meio que passamos da idade. Sei lá, já é o segundo casamento. E meio de sopetão, não? Nem ia metade desse povo, também. eu podia relaxar.

- foi, amora, combinei de cada um levar bebida. Comida eu me encarreguei. Pedi ajuda pra minha mãe. Mas não inventei muito. Quiche, bolo, essas coisas com cara de chique e fáceis de fazer.
- tem a pecan pie?
- tem, claro. Acho que não tem nada vegano, tem problema? Posso inventar algo.
- a outra noiva é vegana, Mariana. Como assim?
- brincadeira, tem salada e uns salgadinhos que achei uma receita. Enfim. Fica tranquila.

Roubada. Tudo isso e Julia nem tinha visto do João. Suzana ficava encarnando em mim sempre que me via. Duas semanas puxadas essas. Porque concordei com isso? Fora curtir festa?

Marta ainda resolveu encher meu saco que não tem tema na decoração. Cansei de explicar que tem. Chama juntar trapinhos e chamar os amigos na casa da outra amiga que não gosta de bibelôs. Sem tema. Sem berloque. Se insistir, cubro tudo de purpurina. Carnaval. Único tema possível. A amiga dando a festa tem um mestrado para acabar, sabe? Doutorado, enfim.

- Mariana. Falei com João.
- oi? Como assim? Falou o que?
- nada demais, calma. Mas ele vai na festa. Você ainda quer que ele vá, não?
- sim. Não. Não sei. Cara. Ando tão fechada que acho que inventei ele pra ser inatingível. Enfim
- tá. Se vira. Atinge aí. Porque ele vai sozinho. E Mariana...
- que foi? Calma, tenho quinze anos e não sei fazer essas coisas.
- eu sei, flor. Mas obrigada. Pela festa.

interlúdio em inglês.

Hi. today I found an old letter from you. And decided to search you on the web. doing that, I found out that you died last year. and I cannot help but to feel guilty. for not keeping contact when you were still alive. I know, it's all a part of life. sometimes we can and sometimes we can't keep in touch. I moved. several times. your courses in Brazil stopped. we had our reasons, I'm sure. and the fact is. I think I never thanked you enough. for helping me be who I am now. for teaching me so much about art and alterity. with you I understood so much that I never noticed before. I will always cherish the day I met you at the MoMA. you wore your teacher's apron, as always. and I probably was using something plain. you helped me to see that it is ok to be eccentric. it is ok to try to do things differently. it is ok to try. sorry for not being everything you told me I could be. but I promise I'll keep on trying. and maybe someday. I can be as good a teacher as you were. you were inspiration. thank you.

10.8.15

casamento

– Porra, Júlia, mas casar?
– Ué, você bem sabe o que dizem: sapatão sempre casa no segundo encontro
– Mas Júlia, você era hétero até anteontem, calma, cara.
– Mas eu sempre quis casar.
– Tá, mas 1. você já casou, lembra? e 2. você conhece a Suzana faz dez anos. Dez anos. Em duas semanas tudo mudou?
– Mariana, você quer que eu diga que foi tipos reclame da band news? Porra, deu certo, sei lá porque, a briga por causa do Jaime serviu pra alguma coisa, sei lá.
– Ai, perdi mais uma...
– aff, você.

Nos abraçamos. Essa coisa de amizades que ninguém explica. Somos basicamente antípodas. Júlia diria que tinha a ver com o mapa da gente. Ia pegar e mostrar onde estavam as vênus. Que sei lá que planeta era domiciliado. Eu acho lindo. E até quero acreditar. Mas sobretudo, sei que amo Júlia, talvez mais do que se tivesse uma irmã em vez daquele bando de macho meio tonto que chamo de irmão. E que era isso. Júlia se atirava sem rede de segurança. Eu fico ali tecendo as redes. Segurando os outros vez em quando, vez em quando a mim mesma nas redes de segurança. Na verdade, verdadeira, depois desses anos todos, já entendi que uma é a rede de segurança da outra. Devia estar no mapa, certeza.

– Eu vou ser madrinha, ou é só juntar mesmo? Suzana andava dura e morando com a mãe, não?
– Pois é. E o meu aluguel subiu. E essas duas semanas foram perfeitas. Ela vai lá pra casa. O que eu penso é: se não funcionar como casal, sempre fomos amigas.
– A gente não é mais criança pra acreditar em carochinha.
– Tá, vou sair do palco, você é encarregada de organizar a festa e não me chatear. Semana que vem. E convidar João.
– hum...
– Dois, Mariana, vai me dizer que já desistiu do rapaz?
– Não entendi qual é a dele. Conversamos horas ali na Comuna. Nem te vi sair. Mas na hora de ir embora, foram só dois beijinhos e tchau. Depois ele me adicionou no facebook. Puxou papo um dia. Mas foi isso. Não esqueça que sua amiga pode ser bastante tímida. Sobretudo quando admira alguém. E eu olhei os trabalhos dele no perfil dele. Ele é bom.

Júlia ficou meio sem saber o que me falar e prometeu sondar o rapaz. Mas eu não tenho muita esperança, não. Quando a fase começou com falta de geladeira em casa, é pra ficar um tempo quieta mesmo. Esperando passar. E organizar o casamento das amigas. muito importante.

Estavam indo encontrar as outras amigas, e Júlia esperava que eu falasse pra elas as notícias. Nenhuma razão especial. Apenas queria ver a cena de fora e poder rir sozinha das caras de espanto. Acho super justo. Faria o mesmo. Agora fazia ainda mais sentido insistir no piquenique no Aterro – tá, piquenique ali é sempre divertido, começa a orquestra no fim da tarde e nem parece domingo mais, mas vocês entenderam – fazia luz e dava pra ver todo mundo. Iam Iara, Andréa e Marta. Júlia queria ver especialmente a cara da Marta. Que cantou ela a vida inteira e ouviu sempre um "não, minha orientação sexual não permite"

Pensando bem, é crueldade dela. Mas eu não tenho nada a ver com isso. Só quero organizar a festa pra ver se tomo coragem de falar de novo com João. E se ele concorda em ir.

23.6.15

embora

– Não, não sei porque estou falando.
– ...
– Claro que pode anotar. Anota aí: a moça era barraqueira, estava irritadíssima porque o problema dela não tem solução e te encheu a paciência. Desculpas, não tem nada a ver com você. É que, como você disse, não tem como resolver o meu problema, e eu preciso resolver.

Desliguei o telefone quicando. Mas o que não tem remédio, remediado está. Amanhã compro uma geladeira nova. Melhor desistir de dar murro em ponta de faca com essa. Agora tinha de sair pra comer. Júlia estava devendo uma desde aquela ida pra Madureira. Jaime chamava o rapaz. Júlia já tinha ido morar com ele, desistido e saído aos berros por Botafogo quando percebeu Jaime dando em cima de Suzana. Pobre Suzana. Ficou ali, no meio do fogo cruzado entre um galinha e uma eterna romântica. E sem nenhum interesse pelo Jaime. Suzana detestava o tipinho remanescente dos anos 80. Além de ser lésbica, o que meio que inviabilizava a cantada, e tornava ridículo Júlia zangar com ela. Ainda bem que ela percebeu logo isso, e só brigou com o pateta do Jaime. Júlia estava sempre com precisão de uma história de amor. Não era de sexo. Pior é que eu ainda saio com o tal do Marcos. Não, não namoramos, nem pretendo. Ele acha graça do meu trabalho, eu acho o dele mecânico. A gente meio que não se entende fora da dança ou da cama. Mas ele é ok. Não sai cantando minhas amigas na minha frente. Apesar de ser mais do que sabido que não temos nenhuma exclusividade. Espero.

Enfim. Seria bom pra Júlia também. Sair de casa, digo. Espairecer. Vamos tentar.

– Oi, gata, geladeira aqui quebrou, posso te convidar pra jantar?
– Bonita, menor saco de sair, quer vir aqui em casa?
– Puxa, eu queria ver gente, não rola mesmo? Estou enfurnada nos livros faz dez dias escrevendo essa joça.

É, eu joguei a carta da moça estudiosa. Funcionou. Júlia veio comigo comer hambúrguer hipster. Pra quem não queria sair, achei até que se esforçou. Uma das coisas do hambúrguer hipster é que além de ter um molho de wasabi dos deuses no sanduíche, tem muito moço interessante comendo ele. E uns drinks bacanas. Mas sobretudo os moços. A maioria deve me achar uma estranha de fora da galera e tals. Mas é só procurar a minha galera. Enfim. Júlia chegou.

– O Marcos me ligou vindo pra cá.
– E?
– Acho que cansei, amora. Falei pra ele isso. Ou acho que falei. Não sou boa em falar isso. Nem em ouvir isso.
– Eu sei, te conheço, Mariana. Mas você tá bem? Chamei a Suzana. Não quero que ela ache por um segundo que me afasto dela pelo merda do Jaime.
– Tadico, ele nem era um merda completo. Só um galinha completo.
– Aff você. Mas o Marcos, cabô?
– Cabô, vim procurar um hipster de cachinhos.

Júlia riu. As pessoas diziam que era engraçado. A forma direta de falar que eu tenho. Nunca entendi. Eu só falo, mas ok, se diverte as pessoas, melhor. E eu já tinha visto um hipster de cachinhos. Faltava só ele me ver.

Júlia sempre achava graça quando eu tentava flertar. Desengonçada, ela dizia. Mas funciona pra você, ela dizia. Júlia queria o novo amor, né? Eu sempre tive isso de só querer mesmo um rostinho bonito. A errada sou eu. De não querer o par quase nunca. Os livros chateiam menos, eu disse a ela. Júlia riu e perguntou se o da vez era aquele ali de olhos claros, pegando cerveja no balcão. Era. Ela ficou roxa, vermelha, azul. Caiu na gargalhada. Foi no balcão. Abraçou o rapaz e trouxe para a mesa. Por alguma razão a cretina conhecia ele faz anos e nunca tinha lhe ocorrido me apresentar.

– Prazer, Mariana
– Prazer, João
– Agora que eu estou tentando entender porque nunca apresentei vocês. Não dou cinco minutos para estarem falando de coisas que desconheço sobre poesia e eu não estar aqui presente. E eu estarei feliz.

Era verdade. Júlia calou. Apesar do constrangimento da fala dela (lembrar de não dar cerveja demais pra Júlia, lembrar de não dar cerveja demais pra Júlia), a conversa foi bacana. Quando eu olhei de novo, ela tinha ido embora com Suzana. Cara. eu nunca tinha pensado nas duas assim. Mas ok.

5.2.15

escuta

– Oi, você tá aí? (pergunta idiota, se atendi estou, resta saber onde ela acha que é o aí)
– Em casa? tô, tô sim, por que?
– Nada, deixa, depois eu falo. Deixa.
– Não, porra, começou a falar, acaba. Quer vir aqui? Quer que eu passe aí? O que você quer?
– …


Duas horas depois, aqui estou eu, indo pra Madureira no trem. Ainda não entendi exatamente como Júlia me convenceu a isso. Parece que tem o Paulinho da Viola na história. Não sei. Na verdade, parece que tem um surfista na história. Um surfista portelense que mora em Botafogo. Eu sei. Que roubada, meus amigos, eu me meti. Vou a Madureira segurar vela. De repente o surfista portelense tem um amigo mangueirense. Ou sei lá, Paulinho descobre que eu sou a mulher da vida dele. Não vai acontecer. Só vou gastar uma fortuna de táxi pra voltar. Porque de madrugada, andar até o ônibus dali da quadra não vai rolar. Já tentei. Vamos ver. Falta só uma estação. Acho que vou comer aquele angu ali da esquina antes de chegar na quadra. Mal almocei pra dar tempo de vir aqui fazer a boa ação do século. Mentira, só tô com fome mesmo. E sempre tive vontade de comer aquele angu, e nunca tive companhia. Hoje vai. Júlia não para de falar do rapaz. Jaime, ele chama. Um surfista chamado Jaime e portelense. Onde a Júlia arranjou esse ser? Falta me dizer que tem dragão tatuado no braço e eu acho que ela pegou o DeLorean pra 85. Jaime trabalha na loja do pai. Acorda cedo e pega umas ondas antes de ir pra trás do balcão. Mas dia de quadra da Portela ele se permite não ir no mar. E hoje, pelo que entendi (já fui melhor nisso) tem escolha do samba com direito a palhinha do Paulinho. Não, Jaime não tem um amigo mangueirense. Não aqui, não hoje, parece que sou a única pateta não portelense no recinto. Minto. Júlia até o ano passado jurava que era da Vila. Mas Júlia sempre teve esse péssimo espírito zellig. Ano que vem sai com um cara do Salgueiro e muda de novo. Ou com um que não curte carnaval e acaba suas noites na Matriz, na Fosfobox, sei lá. Eu não sei mais que boate que tá na moda. Na verdade, eu tenho saído muito pouco de casa. Não faço ideia do porquê.

– Ei, vamos!

Tão ocupada em tentar entender as coisas, quase continuei no trem. Júlia topou meu angu. E enfim. chegando na quadra tudo melhora. Achei fofa essa reforma das casinhas. Nossa, fazia muito tempo que eu não vinha. Nossa, por que eu ando tão enfurnada? Saudades sair pra dançar. Jaime tem mesa. O amigo dele é compositor de um dos sambas. O amigo dele não é surfista. E samba de um jeito que meio que faz com que eu esqueça o meu nome. Num tem coisa mais bonita do que homem que sabe sambar. Tá. Capaz de que eu agradeça a Júlia pela noite. Jaime é bacana. Melhor que a encomenda. Sabe falar. Foi trabalhar com o pai porque curte surfar e samba mesmo, não quis grandes vôos na vida, e enfim. Nenhuma razão pra julgar isso. Tem conforto material mínimo. Viaja quando pode, faz o que gosta no resto do dia. Mexe comigo que escolhi um trabalho que não me deixa nem vir sempre aqui. Só posso rir sem graça. Ok, entendi Jaime. Só tenho de avisar a Júlia que Jaime não entendeu a monogamia. Porque ele vai cantar qualquer ser de saias que se aproximar dessa mesa. Chamei o Marcos, amigo dele, pra dançar, pra ver se ela entende isso daí. Perto da bateria. Onde nada, nadica fala mais alto que o corpo da gente.