30.11.13

vaidade

sofia tinha um armário cheio de vestidos e saias. sofia vez em quando achava que não tinha mais nada. mas tinha os vestidos. e o aluguel daquele micro apartamento no catete. com vista pra... bom, com vista pro vizinho. de uma das janelas, do canto, se via o cristo. tava bom de horizonte. e de janelas. duas. pro tamanho do apartamento, um luxo. era um pouco maior que uma kitschnete. mas não chegava a ser um quarto e sala. enfim. sofia estava se sentindo sozinha nessa quarta feira.

fez um macarrão besta pra jantar. só com tomate mesmo. só por preguiça. sentou pra ver tv. nem pensou muito o que tava vendo. era só barulho. só pra não estar sozinha. engraçado. sofia costumava gostar dessas horas. ninguém falando com ela. exigindo nada dela. ela costumava conseguir pensar. mas hoje, não. hoje tava tudo do avesso.

ela trabalhava em casa. naquela caixa de sapatos. vez em quando, pra se sentir menos presa, saía de casa pra almoçar. tinha voltado pra faculdade. pra ver se ficava menos ermitã. mas não funcionava. ela saía de casa. desgrenhada. quer dizer. desgrenhada pra ela. já descobrira que pro resto do mundo nem era. culpa da família, certeza. por demais formal. enfim. era noite. estava cansada. fim de semestre no tal do mestrado. e não tinha conseguido férias do tal do trabalho. tava complicado.

tinha saído na véspera com o povo do mestrado. o de sempre. só um chopp depois da aula. só um. uma amiga mandou mensagem. tava na praça. será que ela animava de dar uma passada lá antes de ir pra casa? daniel também estaria lá, certeza. sem marcela. sofia tinha desistido de entender. gostaria de entender. mas tinha desistido. carol insistiu. precisava conversar, disse.

sofia foi. de repente nem encontrava o cara. ela tava feliz. a aula tinha sido boa, a discussão tava interessante, ela sabia aonde tava indo pela primeira vez em anos. se sentia segura. não ia ser um problema ver daniel. tinha superado. palavra ridícula. parece que a gente atravessou uma rua. escreveu um trabalho pra faculdade. sei lá. mas era isso. daniel era parte do passado. ela podia ir na praça encontrar carol. e foi.

carol estava linda. de vestido, coisa rara. e com um sorriso lindo. gostou de ver a amiga assim. um abraço. uma cerveja. e carol começou a falar. sem parar. como se fosse uma metralhadora. sofia começou a rir. e soube, ali, que carol não ia nunca falar o que queria. mas enfim. foi ouvindo. daniel apareceu. e era verdade, sofia só deu oi e seguiu a vida. continuou a ouvir carol. daniel ainda rondou uns minutos, mas desistiu.

carol riu com aquela cena. pegou o celular. mostrou o mail. "filho da puta" disse sofia. carol gargalhou dessa vez e disse: exatamente o que eu pensei. o ex da carol. era pior que daniel. sofia riu entendeu a tensão. pegou mais cerveja. e ficaram até de manhã falando, deixando daniel e gustavo no passado. não tinha sido tarefa fácil. nada fácil. mas de repente....

daí. hoje. quarta. acordou tarde. e passou o dia se sentindo sozinha pra cacete. olhando pros vestidos. pensando que carol não tinha tantos vestidos. não era tão vaidosa. mas tava de vestido ontem. e podendo rir. e pensando pq ela, sofia, ali, com a mesma constatação não queria nenhum daqueles vestidos.
verão

o dia estava estupidamente quente. grandes novidades. dezembro no rio de janeiro, se estivesse fresco, era motivo de festa. um sol que parecia dois, mais quente que no deserto, essas coisas todas. não era um dia pra trabalhar. definitivamente aquela roupa toda era um exagero. o ônibus lotado. o centro da cidade lotado. verão no rio deveria ser só pra turistas. como em paris. fecha a porra toda e vamos pra praia. ou pras montanhas, pegar um fresco.

enfim. reunião. toda arrumada pra não fazer feio. ia fazer uma apresentação. e suava feito um porco. desagradável. mas vamos lá. pra tudo dá-se um jeito. entrou na sala de reunião, e sentiu frio na mesma hora. não, carol não tinha problemas com falar em público. carol viu que um dos novos clientes era seu ex marido. não, tinha sido um término civilizado. apenas não estavam mais no mesmo lugar. acontece. como acontece rasgar a meia calça. acontece escorregar e quebrar o braço. acontece sei lá, o motor do carro fundir. coisas que não deveriam acontecer acontecem.

enfim. ela não sabia, mas percebeu na hora em que o viu. ainda ficava mexida. delícia. pelo menos o suor poderia ser creditado ao calor. até agradeceu. deu boa tarde. não falou nada. fez a apresentação. fez seu trabalho. voltou pra sua mesa. quieta. sem dar muita bola pro resto dos colegas. tentou não falar muito. pra não dar muito na vista. abriu o computador. olhou o e-mail. ele tinha sido muito, muito rápido. deve ter escrito no telefone o diabo do mail. era de se esperar. dado o histórico dele. enfim.

na hora nem quis ler. desceu pra fumar um cigarro. comprou um café. levou o celular. melhor ler quieta e sozinha. no e-mail, só uma frase. "ainda morro de saudades"

filho da puta.

19.11.13

você me fez chorar vezes demais nessa vida. claro que me fez rir também. e que era muito bom ficar calado. lendo o jornal. com as pernas misturadas na rede. e que aprendi a comer manga. e você aprendeu a ler literatura africana. e eu acabei de ler o rosa. e você aprendeu a comer queijo francês de verdade. e a usar um pouco mais de manteiga na comida. o purê nunca consegui ensinar e desisti. claro que as noites nem sempre eram boas. e que nós dois nos magoamos, não fui só eu quem chorou. claro que o rio de janeiro vez em quando era pequeno pros dois. claro que eu não aprendi a gostar de acordar cedo. e você não aprendeu a gostar de não fazer nada o dia inteiro. claro que eu não fiz questão de ser amiga dos seus amigos. nem você dos meus. claro que essa história não durou só dois meses. claro que ela não foi uma história fofa pra disney contar. claro que eu fui filha da puta. e você também. claro que eu tive raiva. e claro que eu fui muito feliz. claro que aprendi que estabilidade não mata. e você que instabilidade também não. eu te ensinei a não ter culpa de dormir. de comer. de trepar. você me ensinou a ser um pouco rancorosa. e a desconfiar por vezes do outro. não aprendi muito bem. e a ter culpa vez em quando. nem que seja pra ter assunto na analista. claro que durou tempo demais. claro que agora não dá mais.

12.11.13

Saia Velha


Cabelo horroroso, roupa velha e claro, a metade homem do casal mais lindo do mundo desce o elevador comigo. Mariana pensou e se olhou no espelho. Não, nada se salva. A saia ainda por cima tem um laçarote que por baixo da blusa frouxa faz um murundum. Coisa horrorosa. A saia tinha um furo. queimadura de cigarro. Mariana ficou fixada naquilo. Olhando no espelho. Pra que morar em andar alto, gente? A metade abre a porta pra ela passar. Não sem rir. Era sempre assim. Aqueles dois deixavam ela meio tonta. 

Desde que se mudaram pro prédio, era sempre o mesmo drama pra ela. Queria estar arrumada. Pros dois. Cheirosa. Estava criando uma relação inteira na sua cabeça. De repente era isso que chamam de loucura. Deixa. Nenhum dos dois nunca iria olhar pra ela. Sem graça. Normal. Os dois espetáculos de seres humanos. Affe. Andou até a barraca de pastel. Parando pra pensar, por que diabos tinha ido na feira assim? Era sábado, a barraca de pastel ficava sempre cheia. 

Mariana andava meio desleixada. Lembrou da avó e ficou meio triste com isso. Ela não iria gostar. Melhor mudar. Na volta do pastel, encontrou com o casal inteiro. Se falaram. Tinha algo de triste nos dois. Como nela. De repente ela tava só projetando. Saíram no décimo andar. Ela ainda continuou. Décimo sexto. Via a cidade do alto. Dali dava até pra ver uma nesga do mar. Pleno Botafogo. Parando pra pensar, era exótico mesmo. Curtia morar ali. Na verdade, tinha morado ali perto a vida inteira. O casal tinha se mudado fazia pouco. Sem filhos. Eram lindos. Lindos de doer. E Mariana, sempre a careta, não sabia lidar com aquilo que sentia. Também, lidar com o que?

Decidiu parar com aquilo. Aquele mormaço de vida, sabe? Onde nada acontece? Nada andava fazia um tempo. Levantou e tomou uma atitude um tanto mulherzinha, mas foi só no que conseguiu pensar. Marcou hora no salão. Cortar e pintar o cabelo. Fazer as unhas. Sair dali sem olhar envergonhada pro espelho. Enfim. Foi lá e mudou tudo. Emendou com um bar com as amigas. Riu e bebeu e conversou até cansar. Voltou pra casa. E uma mão segurou a porta do elevador pra ela. A metade homem do casal mais lindo do mundo saindo com uma malinha nas mãos. Cumprimentou o rapaz, de olhos vermelhos. O álcool fez com que achasse normal perguntar se estava tudo bem. Com um sotaque que entregava que ele não era dali, veio a resposta. Um não, claro. Perguntou, já que o álcool tava dando forças, se ele tinha pra onde ir. Hotel, disse, ia catar um ali perto. Falou pra subir. Descansar a cabeça no sofá dela e amanhã falar de novo. Na verdade, mais do que atraída por ele, Mariana não estava se conformando com o casal mais lindo do mundo brigar.

O nome dele era Rodrigo. Nome comum. Eles eram do Recife. Ele tinha sido transferido. Já andavam complicadas as coisas antes de saírem de lá. Moravam em Casa Forte, perto de onde Mariana sempre ficava quando ia passar férias por lá, na casa de uma amiga. A mulher se chamava Laura. Eles não sabiam mais porque estavam juntos, na verdade. Se casaram assim que acabaram a faculdade. Aquelas histórias que se ouvem tantas vezes. Mariana também falou da vida dela. Abriu mais uma cerveja. O casamento com Pedro tinha sido um desastre do começo ao fim. Se casaram porque Mariana se descobriu grávida. E acharam lindo aquilo. Sofreu um aborto espontâneo no terceiro mês, como tanta gente. Tentaram provar pro mundo que o casamento não era a gravidez. Mas era.

Laura era linda, Mariana não conseguia enxergar aqueles defeitos todos que Rodrigo via nela. É só raiva do momento, disse pra ele. Ele riu. Passou a mão nos cabelos de Mariana. Desceu até a cintura. E treparam, claro. Como há muito Mariana não fazia. Um tesão absolutamente louco. Ela não conseguiu pensar que estava errada. Que nada. Só existia ela e Rodrigo. E o sofá. O chão. A cama. A pele castanha dele. Lisa. Quase sem pelos. Os olhos claros. Aqueles dreads. Os dedos dele apertando as ancas. Os peitos dela. As bocas se mordendo. O suor escorrendo pelo corpo inteiro. Até o sol nascer.

O telefone tocou. O dele. Laura, claro. Domingo, quem mais ia ligar a essa hora? Rodrigo atendeu, claro. E falou, suavemente. Mariana nem acreditou. Pra Laura subir.
Biscoitos

joana acordou com o cheiro. Cheiro de cookies de chocolate. Com nozes, por favor. Fazia anos que aquele cheiro não invadia a casa. Mentira. Fazia anos que ela não estava ali. Fugia sempre. Era incapaz de chegar e falar pra família que simplesmente não queria passar o natal com eles. Cada ano arranjava um trabalho, uma viagem, algo que impossibilitava a sua volta. Naquele ano, não arranjou nada. Não sabia se tinha sido sem querer. Ou se eram saudades simples. Mas tinha pego o avião. E tava ali. Com irmãos, mãe, primos... E com o cheiro. Sua mãe tinha essa mania. de acordar cedo, cozinhar pra um batalhão. Como se fosse resolver a fome da África com seus biscoitos. Ou toda a dor das pessoas queridas. O que viesse primeiro.

Engraçado que morava na mesma cidade. Mas era doloroso estar ali naqueles dias. Já tinha morado fora. E daí as desculpas eram simples. Falta de grana pra passagem. Acontece. Mas nos últimos anos tinha simplesmente saído. Passou dois na casa de um namorado. Se sentiu peixe fora d'água. Aquela pouca comida tinha incomodado tanto. Vontade de entrar ela na cozinha e fazer os mil pratos da família. Daí começou a achar que era hora de voltar pra casa. Percebeu que, mais do que a eterna preguiça de estar em família, estava com saudades de estar em família. E com a família dela. Tava passando da idade de voltar, na real.

Depois da morte do irmão, não conseguiu mais. Doía aquela mesa com um buraco. Aqueles presentes que ninguém queria abrir meia noite. O presépio montado meio sem paixão. O irmão amava natal. Dava prazer ajudar ele ali. Joana ainda não sabia lidar. Nunca soube lidar. Com essa falta enorme. De tudo. Na falta de saber lidar, a fuga. A fuga ano passado tinha sido espetacular. Talvez porque soubesse que era a última. Pegou o avião dia 24. Foi visitar uns amigos em Paris. Emendou com Madri. Londres. Lisboa. Verdadeira volta ao mundo. Torrou as economias. Trouxe presentes. E lá em Paris, na verdade, lembrou do bacalhau. E da mousse. E dos cookies. E do banquinho do lado da cama da avó. Sentiu saudade das asneiras do tio chato.

Então voltou pra casa depois da viagem. E aquele namoro que já ia mal das pernas (onde já se viu, dar tchau pro namorado dia 24, avisar que vai fazer isso dia 20, e só voltar mês e meio depois?) terminou mesmo. Era insuportável pra ela a família dele. O cheiro dele. Como caralhos tinha namorado alguém que cheirava tão mal? E lembrou que amava estar solteira. E foi pros shows com as amigas. E se pegou simplesmente conversando. Pés na areia. Até o sol raiar. Falando sobre o futuro. Que ainda podia vir. E percebeu que ainda tinha futuro. Talvez pela primeira vez em dez anos. E decidiu que tava tudo bem. E que não ia mais fugir.

Entrou no shopping num dia de dezembro. Sem perceber, foi direto pra loja predileta do irmão. Sentou num daqueles bancos de shopping e chorou. Chorou o que não tinha mais sido. E se percebeu frágil. E ligou pra mãe.

– Mãe, nem perguntei, tá faltando algo pra ceia?

3.11.13

lua de s. jorge


era um dia de s. jorge. não quer dizer nada. joana não é devota. não tem um santo pra chamar de seu. nem católico, nem orixá, nada. dia de s. jorge era só um dia pra acordar tarde e procurar um samba. acorda-se mais tarde até porque na véspera ninguém dorme com o foguetório. rio de janeiro e suas idiossincrasias. salve jorge. melhor não dar bobeira.

joana queria ir especificamente a uma festa hoje para encontrar joão. tinha conhecido ele um mês antes. excepcionalmente, não em um bar ou festa, mas em um seminário. situação formal. mas enfim, falando de culturas e relativismos e, e... papo chato, né? chato ou não, os dois se entenderam e ele falou que ia nessa festa. e claro, s. jorge ia ajudar a encontrar ele. porque deus ajudar nessas coisas, né por nada não, mas não tava funcionando bem.

então. roupa vermelha ou era exagero? sem ser devota, ficava constrangida. nunca tinha ido na festa. e bom. ainda se achava um tico tímida. cadê a amiga? claro, chamara uma amiga pra pelo menos fingir que tava tudo normal. que, enfim, ela não estava indo só pra isso. vai que s. jorge se chateava com ela? melhor não arriscar. mas a roupa ia vermelha. proteção nunca é demais.

mari finalmente chegou. caiu na gargalhada com o rapaz chamar joão. com o rapaz ter chamado atenção dela pelo discurso. claro. era joana. vai que dava certo? ao menos pelo dia de s. jorge, né? mas a festa precisava ser tão longe? tinha nenhuma mais pertinho, não? pelas amigas faz-se tudo, pensou. e saíram. uma de branco, uma de vermelho. rumo à tal festa. não. rumo a joão. ele que aguardasse.

Bom dia? (2)

Banho tomado, com Adriana ao seu lado, Tânia foi passar em casa. Não fazia ideia do que a esperava. Marcelo não atendera o telefone. Chegou em casa, um bilhete.

"Tânia,
Tá tudo errado. A gente tem se machucado muito. E acho que precisamos de um afastamento. Físico mesmo. Fui pra casa dos meus pais. Uma semana de licença no trabalho, falei com João, que nem perguntou pra que. Sexta-feira eu volto e a gente conversa. Não tenta ligar não, por favor. Acho que ontem esgotamos tanta coisa. Descansa. Seu celular tá em cima da cama. Ainda te amo.
Beijos,
Marcelo"

Bom, ao menos ela ainda tinha celular. E nem tava quebrado. Mas sabia. Que um tempo é coisa que não existe. E que aquilo ali era um pedido. De paz. Mas enfim. Chega. Sentou no chão. No meio da sala. Começou a chorar. Na verdade, nem sentia o chão. Não sentia o abraço de Adriana, segurando ela. Nem o calor daquele dia de verão no Rio de Janeiro. Nada.
Diante de tudo isso (ou nada disso, não sabia). Levantou, pegou um biquíni.

– Arpoador ou Leme? perguntou Adriana.

E foram.

1.11.13

Bom dia?

Quando acordou, Tânia não lembrava bem como tinha ido parar ali. Abriu os olhos, e sabia exatamente onde estava. Na casa de uns amigos. Mais exatamente na sala. Só não lembrava de ir prali antes de dormir.
Tinha saído com Marcelo. Japonês. Saquê. Foi o saquê. Deve ter discutido. Por que diabos ninguém acorda? Não tem um ser humano ali pra ajudar a refazer a memória? Bom. Levantar. Olhar pro lado com certo medo. Nada. ufa. Tava sozinha. Mas sem roupas. Olhou pro lado de novo – as roupas não estavam ali, mas uma toalha. Se enrolou e foi na área. Como tinha pensado, as roupas estavam no varal. Era oficial. A coisa tinha ficado feia.
Resolveu tentar relaxar e fazer o café. Adriana não ia achar ruim. Pôs a chaleira no fogo. Achou sua bolsa. Sem o celular.
– Tá melhor? Conseguiu dormir?
Era Adriana acordando. Não sabia como ou o que responder. Nem ressaca tinha. Só uma absoluta falta de memória do que tinha acontecido na véspera.
– Bom dia, flor. Tô, só não lembro de bissolutamente nada. Me ajuda aqui?
Adriana riu.
– Não posso ajudar muito. Você apareceu aqui. Chorando. Suja. Roupa arrumada. Parece que você brigou com o Marcelo no meio do restaurante. Quebrou o vidro do carro dele com o celular. Mas não sei se é verdade. Você chorava muito. Tava passando mal. Eu te dei um banho, lavei suas roupas. Vc apagou depois do banho. Na verdade, eu tava torcendo pra você me contar o que aconteceu hoje...

Píííííííííííí

– A chaleira – disse Tânia
Voltaram pra cozinha.
– Você deveria tentar achar o Marcelo. Cancelar o celular, que não sei se realmente quebrou.
Adriana sempre fora prática. Muito mais sensata do que ela. Era verdade. Mais do que falar. Era hora de parar de tentar com Marcelo.
– Você tá namorando com ele porque, amore?
– Não sei, Dri. Ou sei. Porque é ele, porque sou eu. Porque a gente já desistiu de se evitar. Mas parece que não tá funcionando. O que quer que seja.
– Isso percebi. Você tava transtornada. Relatava uma briga que, quero acreditar, é invenção sua, como tantas outras.
– Eu sei. Eu sei que o mundo na minha cabeça é diferente. Que eu amplio as coisas. Mas, no caso, eu realmente não sei. Marcelo pisou na bola. Me contou umas coisas que eu sei que são mentira. Brigamos mais cedo, e saímos para jantar meio que para fazer as pazes. Cheia de mágoa e saquê...
– Tânia, tem coisas que não entendo. Por que aqui em casa? Sua mãe tá viajando?
– Flor, do jantar em diante eu não lembro. Lembro que tomamos umas duas garrafas de saquê. Que falamos besteira. Futebol, notícias, ssascoisa. Mas perdi em algum momento qualquer lembrança. Preciso ligar pra ele. Tentar descobrir se ele lembra. E resolver isso. Mas não tenho coragem.
– Tá, fica aí, descansa. Vou com você na sua casa, pra você pegar umas roupas. Mesmo se vocês decidirem voltar, melhor dar um tempo. Pra abaixar a poeira.

....... (continua)

8.8.13

Escrever


– pra que viver? o importante é navegar e escrever.

Júlio e suas frases de efeito. Manuela andava meio de saco cheio. o grande intelectual. o cara que pensa. que sabe. affffff.... podia fazer isso longe dela. quer dizer. não. Manuela não queria se separar. não agora. mas queria que Júlio fosse mais parecido com o Júlio que existe quando estão só os dois. o Júlio que conversa e fica desarmado, deita a cabeça no seu colo pedindo cafuné. não conseguia entender porque cargas d'água Júlio em sociedade tinha de ser tão importante. tão... pedante. 

ai... Manuela ficou chateada de novo. Júlio não sabia mais como lidar. como que a mulher independente, cheia de si, até pedante, por quem ele tinha se apaixonado se transformava nessa boba, meio competitiva. não, pera. não era sempre. quando estavam só os dois, ela era a águia de sempre. respondia, lia, conhecia, e brincava. mas ali, na frente dos amigos, ele ficava até meio sem graça, como se agredisse ela falando. saco. 

os dois se conheciam desde.... desde sempre, parecia. mas nem era. foram amigos por muito tempo. as gracinhas de sabichão dos dois, as piadas internas, foram cultivadas em anos de praia. sempre no verão depois do trabalho. aos sábados pelo menos no fim de semana. sempre na praia. saindo depois pra beber. vez em quando no maracanã (raramente. ele era vascaíno. ela flamenguista. melhor não). se conheceram por amigos em comum. fizeram a turma de praia, como dizia Paulo. vc vai na praia pq tem com quem ir, ele dizia. e não deixa de ser verdade. praia, no rio, é um acontecimento social. é O acontecimento social. 

ele fazia matemática na UFRJ quando se conheceram. ela mudava de curso mais do que de biquíni, ele achava. e vivia reclamando com ela. um dia, da galera toda que sempre ia, só os dois foram. por acaso (acaso nada, os amigos meio que marcaram de deixar os dois sozinhos naquela tarde de janeiro). um calor insuportável. foram ficando na praia depois do sol se por, caminharam pro arpoador e ficaram bebendo cerveja na areia. uns meninos mais novos faziam luau ali do lado. eles dividiram a canga. onde já se viu homem lembrar desse detalhe? e foram percebendo q os amigos tinham tentando dar uma forcinha. e não acharam ruim. 

tudo parecia natural, engraçado. era o esperado. dois espécimes comuns do rio de janeiro. que passavam suas tardes na praia. que pulavam carnaval. que não fugiam muito de nenhum estereótipo (daí ele largou tudo e foi fazer filosofia, pra desespero dos pais dele, e ela conseguiu terminar RI e começou a ganhar dinheiro, mais que ele, claro). um dia, pareceu natural ir morar juntos. ela podia pagar pelo apê, ele podia ajudar com alguma coisa, claro. e ele tinha grana de família. e apartamento próprio, na verdade. parecia não só gostoso como prático. e daí eles pareciam um casal perfeito. complementar em todos os aspectos. 

três anos. e tudo parecia bem. e nunca brigaram em público. Manuela tava viajando fazia horas pensando nisso tudo, acordou com aquela frase....

– o importante é navegar e escrever.

– Júlio, amanhã eu saio de casa.

28.5.13

pedaço

um dia vc se parte. é rápido. um grito. um baque. e uma parte caiu e quebrou. a parte doce. a parte mais loura. a que era só abraço e sorriso. e a parte que fica tem de lidar com isso. acordar e saber que a outra não existe mais.

e a gente vai e faz. e vai e vive. mas vez em quando algo lembra a gente do que era. aquele pedaço que era mais novo, que ia viver mais. que ia estar do nosso lado. o magrelo, louro, agitado. o que fazia tudo que eu não faço. e eu tento lembrar dele e aprender com ele. sempre.


26.4.13

entranhado

tem gente que fica entranhado. que come por dentro o nosso fígado e a gente não repara. e um dia acorda e tenta olhar porque. e não tem porque nenhum. uma vez leu sobre quem trabalha em matadouro. e o cheiro de gordura entranha. gordura animal, não tratada. não solta da nossa pele. entranha.

especialista em ficar com gente entranhada. mariana andava com caraminholas na cabeça. as pessoas entranham fácil, pensou. como se ela não soubesse deixar as pessoas de fora. não, não era isso. as pessoas eram a gordura? não, também não. pera. 

no momento estava bom ter alguém entranhado. mariana conheceu joão meio por acaso. não tinham amigos em comum. não trabalhavam juntos. nada. estavam no mesmo bar. ela, voltando do banheiro, esbarrou nele. a cerveja dele caiu no chão (parando pra pensar, como assim?) ela pediu desculpas. quis pagar outra pra ele. começaram a conversar. moravam na mesma rua. ele era mais novo. não muito. mas parecia mais bem resolvido na vida do que ela. como se fosse difícil. mariana estava sempre por um fio em qualquer trabalho. sempre meio em crise.

joão era calmo. era um antípoda. e as coisas pareciam simples. estranho aquilo. mariana nunca tinha tido calma na vida. nunca tinha nem procurado, na verdade. joão era a calma em tudo. no dia a dia. nas conversas. na cama. tudo tinha seu tempo, tudo era tranquilo. tudo era em paz. e ela foi deixando aquilo ser parte dela. entranhar nela. tudo em calma.

e daí que mariana, sempre tão mal humorada. mariana, que nunca via o lado bom das coisas. mariana estava em paz. e entranhada de joão. e aquilo tudo ali podia não acabar nunca.

23.4.13

debaixo d'água


respirou fundo e mergulhou. abriu os olhos, lembrou que dessa vez tinha pego a máscara. e olhou em volta. azul. com peixinhos. uma estrela do mar no chão. pensou se queria ir até o fundo pra pegá-la. a cura, sempre com água e sal, pensou. e foi.

a graça de mergulhar de apneia é essa tensão. será q vai dar. que o pulmão aguenta. é uma aposta. e vez em quando a gente precisa desistir no meio. mas não dessa vez. pegou a estrela do mar e subiu feito criança. subiu na lancha. ficou olhando praquela conquista. como quando era criança. uma familiaridade. uma felicidade. riu de si mesma. depois ficou com pena da estrela. mergulhou e devolveu pra areia.

debaixo d'água a apneia é a única tensão. não tem ninguém. não tem trabalho. não tem peso. não tem tempo. uns dias até achava bom nunca ter aprendido a mergulhar com cilindro. nunca mais voltava, certeza. era o lugar dela. sem mais ninguém. olhou em volta. ninguém. dizem que é perigosa essa brincadeira. mas parte da graça era essa, né? tensão. voltou pra água.

quando ficou exausta, quando o corpo não aguentou mais, voltou pra casa. a casa, enorme, estava vazia. era meio de semana. ninguém na casa de praia que normalmente abrigava a família e meia dúzia de amigos. nenhum colchonete no chão. nenhuma confusão na cozinha. as pernas doíam. os braços. cabelo parecia uma palha de tanto sal. meio queimado de tanto sol. se olhou no espelho. vermelha feito pimentão. não conseguiu deixar de rir.

entrou no banho. a água escorria pelo seu corpo. pelas costas. pelos ombros. pelas pernas. deixou o sal escorrer pelos braços, pelas tatuagens. shampoo, sabonete. a espuma descia fazendo desenhos nos azulejos. sentou no box. deixou a água escorrer mais. olhava para seus pés e pareciam tão estrangeiros. os dedos das mãos tão exóticos a ela mesma. esfregou com mais força. o que o mar não tira, nada tira, pensou. desistiu. e passou a se permitir desistir mais das coisas depois disso.

14.3.13


...


arrumou diligentemente todos os papéis. reorganizou calmamente todos os arquivos no computador. e olhou praquele chaveiro. coisa cafona. chaveiro de duas metades. cafona. como a gente é cafona apaixonado. mas era isso. chaveiro de yin yang. affe. coisa cafona. mas era aquilo. na época deve ter feito sentido. agora, nenhum. nem o chaveiro, nem as chaves.

tava tudo bem, paula não parava de repetir. tudo direito. tudo inteiro. faltava metade nenhuma. e de repente, ver aquele chaveiro colocou ela inteira no passado. inteira longe. inteira pela metade. era estranho voltar a estar pela metade. como se tudo que estava ali antes tivesse sumido. ela tinha esquecido essa sensação. de vazio.

lembrou da história toda. do se conhecer. do namorar. e de repente, sem perceber, do morar com ele. morar só, não. casaram. pompa e circunstância. igreja. amigos. festa. até hoje tentava entender porque. acho que nunca ia entender. quem quis aquilo primeiro. se ele, se ela ou se alguma mãe. enfim, fizeram a festa. e paula, a louquinha. paula, a boêmia. paula, a esquerdista. ela mesma, entrou de branco na igreja.

pra que tanto, nunca soube. a mãe dele achava ela difícil. de repente ela quis agradar. e foram pra europa em lua de mel, claro. pra que pensar? paris. clichê. tudo clichê. yin yang. lembrava do dia em que compraram aquilo. claro, não era bem um yin yang. ela precisava de um verniz pra dizer para si que não era comum. que não era igual ao resto das pessoas. era um yin yang de grife.

enfim, voltaram pro rio. e márcio não sabia como lidar com estar casado. a verdade é essa. nem ela. nenhum dos dois queria ceder meio palmo. de nada. e foram levando aquilo, tentando aquela queda de braço. até que não deu. um dia acordou e percebeu.

saiu de casa (onde já se viu, mulher sair de casa) outro apartamento. outra vida. sozinha. vivia cheia de amigas em casa. achou que márcio tinha ficado ali. no passado. como um disco antigo. ou um ex-namorado de escola, sabe? passado. nunca mais soubera nada sobre ele. se estava bem. se tinha casado de novo...

foi a joana quem pediu. uns negativos de umas fotos antigas. foi arrumar os papéis pra procurar. arrumou as pastas. e achou a chave. o chaveiro. e agora tava ali. esperando a outra metade.

2.2.13

falando com amigas, reparei hoje que nunca escrevi o final da história do bisavô.

chegou no brasil e veio pro rio (claro). não encontrando castelos para alugar e falsificar quadros, decidiu falsificar selos. olho de boi e tal. falsificava e vendia pra filatelistas como cópias. eram perfeitas, dizem. um dia, uma pessoa que tinha comprado um olho de boi de terceiros resolveu retirar o olho de boi do envelope (sim, amigos, ele se dava à pachorra de colar o selo em um falso envelope e falsificar o carimbo dos correios). pra tirar selo de envelope, se mergulha o envelope em água morna. o selo sumiu, a tinta dissolveu. era uma falsificação, descobriram. mandaram bisavô para o méxico. novamente, era difícil de se provar.

meu pai foi visitá-lo uma vez, quando competiu no panamericano de natação. não lembro a cidade. talvez península de yucatan. meu bisavô, o velho thuin, morava numa casa que ocupava um quarteirão inteiro. com umas oito mulheres. meu pai foi com o irmão mais velho, que já era casado na época. meu bisavô tentou convencer a mulher do neto a ficar ali com ele. não colou.

reza a lenda (a lenda sendo a filha mais velha dele, a bastarda, que tinha fotos dele pela casa em copacabana e ia em cruzeiros para namorar aos 90 anos) que ele depois foi expulso do méxico e acabou seus dias na arábia saudita. mas olha. lenda familiar não começa a descrever isso daí...

2.1.13

a água


Tava quase dormindo em casa quando ligaram. Na verdade, mandaram DM. Trocou de roupa e foi pro bar. Fazia cinco dias que não saia de casa, acabara de reparar. Aliás, não tomava banho desde ontem. Melhor tomar banho. Voltou, melhor.

As amigas andavam preocupadas. Não tinha nenhuma razão pra isso. Ana estava bem. Ensimesmada, calada, trancada em casa. Mas bem. Só que reconhecia que não devia estar tão bem assim. Olhou pro cabelo. Ensebado. Não devia ver água fazia uma semana. Gente. A pele. Nossenhora. Entrou debaixo d'água pensando como diabos tinha chegado naquele ponto de descaso consigo, achando que  tava tudo bem. Santas amigas.

O Daniel tinha saído de casa fazia uns três meses. Na verdade, tava tudo uma merda muito antes. mas foram empurrando com a barriga. Normal, né? Ela contava essa história pra ela mesma mais vezes do que deveria. De normalidade. De que estava só trabalhando muito. Santas amigas.

A água escorria pelo corpo e Joana pensava como fazia tempo que não sentia prazer. Simples, como aquele da água escorrendo. Nem isso ela andava se permitindo. Fechar os olhos e fantasiar com a água. O prazer do corpo. Água escorrendo pelos seios, pela barriga, entrando pelas pernas. Os olhos fechados e só a água. Foi lembrando que estava viva. Foi lembrando o quanto tinha se esquecido nos últimos meses com o Daniel.

Ficaram juntos pouco tempo, na verdade. Tinha sido uma dessas paixões fulminantes. Conhecera Daniel em um bloco de carnaval. Amigo de uns amigos. Quando viram, o bloco tinha passado e eles pra trás, conversando. Falaram sobre tudo. Passado, futuro, família, carnaval, sexo... Dali a três meses, estavam morando juntos. Na casa dela, ali em Santa Teresa mesmo. Vista pro mar, ela gostava de dizer. Lá do alto, mas vendo o mar. De noite frequentavam os bares dali do Largo das Neves. Ou se aventuravam descendo o morro pra ver os amigos. Mas passavam muito tempo dentro do ninho. Ela trabalhava em casa. Ele não. Se viam muito pouco, na verdade. Nos fins de semana. Ele viajava muito a trabalho. Mas ela estava acostumada a ficar sozinha naquela casa.

Um dia, na volta de uma viagem dessas dele, tudo pareceu estranho. Na verdade, devia estar estranho há muito. Desde que se conheceram. Os amigos, mesmo os amigos em comum, não apoiavam muito aquilo. Achavam meio fora do personagem dos dois. Achavam que tinha algo de estranho naquela sofreguidão. Mas enfim, nunca brigaram ou sumiram. E ela também entendeu a preocupação deles. Claro que depois de brigar com todos, cortar relações com meia dúzia... Mas isso era passado. Agora eles tavam lá, na sala, cobrando dela sair da cama. E ela, que tanto reclamara, agora estava adorando. Esse banho...

Enfim, depois da tal viagem eles perceberam. Os três anos, aquela sofreguidão, ânsia, desespero. Tudo aquilo tinha acabado. E não tinha nada no lugar. Nada. Eles quase não se viam. Quando se viam, só sobrava sofreguidão. E quando a sofreguidão acabou, ficou aquele vazio. Ele entrou pela porta da viagem e ela sabia. Quase não falaram nada. No dia seguinte, ele fez as malas e saiu. E o apartamento ficou igual a antes dele chegar. Um não tinha interferido em nada no outro. Muito estranho.

Ficou só trabalhando. Mal saía. Mentira, foi nos aniversários, visitar a mãe vez em quando, todo o mínimo protocolar. Mas nas últimas três semanas, só saiu pra comprar comida. E nos últimos dias, só pediu comida, quando acabou o que tinha na despensa. E os amigos perceberam. E vieram tirar ela dali. Nem perguntou pra onde iriam. Mas tinha certeza de que ia sair dali. Saiu do banho. Um pente no cabelo pela primeira vez em um tempo. Um sapato, um rímel. Uma cara de quem tá viva. Saiu do quarto, os amigos todos ali. Respirou fundo. Apertou a mão de uma amiga. Abraçou outra. Saiu da casa. E acabou o interlúdio.