12.12.16

luto

quando meu irmão morreu. eu tinha 22 anos e estava saindo da faculdade. e estava sem emprego e sem nenhuma perspectiva. e sinceramente querendo jogar tudo para o alto e sei lá. não, eu só queria jogar tudo para o alto. enfim. no meio daquilo tudo. minha mãe decidiu que a gente precisava trabalhar. era o jeito dela de encarar o luto e eu concordei. e eu fiz com ela o livro sobre ele. diagramei, imprimi, encadernei. chamei os amigos. ficávamos no jardim da casa da tia colando e costurando o livro. e aquilo por muito tempo ficou sem que eu entendesse o propósito. eu fizera pela minha mãe, mas não entendi. luto pra mim era o que eu tava fazendo com o fim da faculdade e das certezas da adolescência: ficar trancada no quarto calada.

daí eu perdi avó, outra avó, amigos. e segui meio sem entender. mas fazendo. luto se trata quieto, em outros momentos, o trabalho leva a gente. a comunidade leva a gente. depois eu lido com isso. e ia segurando a mão dos que pediam. estando longe do que pediam. porque eu ia entendendo que luto era isso individual. que cada um consegue fazer ou não.

daí hoje eu tô aqui olhando pras perdas e ganhos de uma vida. e entendendo. luto é trabalho. é poder elaborar e seguir adiante. é carregar nas pernas os que vieram antes. é ter na cabeça os que me antecederam. luto é parte integrante da vida. desde sempre. e é importante pra mim esse andar mesmo que. não me peçam mais para parar. eu entendi que. se eu parar e for ali pra dentro do quarto. dali eu não saio nunca mais. cada um elabora do seu jeito. se permitam elaborar. mas permitam a comunidade ao seu redor. permitam o cuidado que os outros querem ter. permitam estar com os outros. porque só daí. só dos outros. podemos criar de novo a nossa vida.

8.12.16

Mãos

Maria estava enlouquecida de trabalho. Com o golpe (gente, não dá pra respirar com o golpe). Com estudo. Maria estava cansada e não conseguia nem pensar em nada. Sobretudo não em rapazes, como tinha perguntado uma tia na festa de natal.

Foi no trabalho porque precisava ir. Falou com os colegas porque precisava falar. E daí de repente olhou pras mãos de um colega que veio falar com ela. Mãos de velho. Pensou. E não pensou mais nada depois.

6.12.16

desgarrada

talvez me defina. porque não é que eu não tenha grupos. é que ativamente eu não participo deles. eu saio pela tangente. em alguns eu fico triste de ter sido colocada na berlinda. normalmente eu fico. mas eu reconheço. que quem faz o primeiro movimento de ir ali ver outra coisa. sou eu. lembro quando eu brigava com ex marido. "como assim eu saí e você ficou o dia inteiro sozinha em casa? e aqueles seus mil amigos?" e eu respondia "seguem estando ali. sigo amando eles. não gosto de ver gente quando eu não estou bem" isso segue sendo verdade. sigo sendo alguém que só pode ver gente se eu começo o movimento. que preciso me esforçar para aceitar um convite e ver gente. mas eu gosto de grupos.

eu ainda falo com o grupo da escola. o da faculdade. o da pós. o do mestrado. eu tenho amigos da internet discada. da internet de hoje. eu faço grupos. eu viro o centro. outro dia uma professora me chamou de "agregadora". eu chamo e coloco debaixo da asa. e tomo cuidado pra não virar uma protetora dos frascos e comprimidos com os meus. mas tem um egoísmo meu insano de precisar ser tudo no meu tempo. e eu preciso estar bem. quando eu estou mal o número de vezes que a palavra eu é falada por mim é desnecessário. o tanto que eu exijo do outro é impossível. o que eu quero nem eu sei. eu preciso estar pronta para doar. porque eu não sei receber.

o texto se alonga. eu sigo desgarrada. amando cada um dos grupos. e me reconhecendo como parte deles. eu estou ali. eu participo ali. eu sei. mas eu sou desgarrada. eu sou a borboleta que aparece vez em quando. que bordeja. que some. e que volta. eu volto. e daí eu posso até ouvir que eu sou desgarrada e escapo deles. mas eu sei que é amor.

4.12.16

noite

eu sempre gostei de boîte. de noite. lembro de ter tentado entrar na kitschnette. não consegui. tentei na dr. smith. não consegui da primeira vez. eu era uma moleca quando pedi pra ir com a prima no barão com joana. sempre fui novidadeira. é aquariana, as amigas horóscopo diriam. enfim entrei na dr. na smith, decidam. eu tinha acabado de fazer 17. ia direto. depois eu fui na sweet home, bang, bunker, nas 3 casas da matriz, no bukowski original, no kalesa, num outro treco que tinha ali na zona portuária. eu ia no baile charm da fundição e ia tanto que o segurança me punha pra dentro sem a fila. eu sempre gostei de noite. ia em todos os forrós da cidade. no ballroom, no malagueta, em santa tereza. enfim. novidadeira.

nessa da novidade, eu nunca passei muito tempo num pouso só. me enjoa. só volto pro samba. pro samba eu volto sempre, não se preocupem. eu sou novidadeira em samba também. cato onde tem um novo, procuro com os amigos quem conhece samba novo. enfim. mas no samba eu fico. no maracatu, nos tambores. é como achar meu lugar. tô bem aqui. é o que curto mesmo. pra que buscar mais novidade? e daí tem a coisa. que eu achei que nunca ia acontecer. das coisas que eu gosto do samba é que pode ser de dia. eu, que sempre fui da noite. enfim. a gente muda vez em quando.

e daí ontem a amiga fez aniversário e me chamou pro bukowski. e é amiga, eu vou. e eu não lembrava porque eu tinha desistido do circuito de boîtes e similares. gente. eu me incomodo com. a música alta. com tocar as mesmas músicas de quando eu tinha vinte anos (apesar de dançar absolutamente todas aos berros. tocou sweet dreams, o que sempre é motivo pra comemorar). mas né? o bukowski nesse sentido é ok. o  bar é limpo. comida decente. espaço amplo. tem até jardim (não se enganem, não é mais a casa da matriz no começo, ou o próprio bukowski no começo, com tudo improvisado mas a um preço acessível, é caro. bastante caro. um drinque 30 reais caro).

daí tem as pessoas. um rapaz beudo com uma camiseta amarrada no braço (não entendi até agora o acessório, gente) me disse que me amava depois de puxar as amigas todas para dançar. agradeci. e ele nem era feio. mas foi rápido demais, acho. uma moça, que nem todas as outras, de cabelo em chapinha e roupa curta, justa e decotada (queria eu ainda usar isso, mas hoje em dia eu fico com pudores) vira pra mim e fala "eu sempre quis ter cabelo assim, eu admiro tanto quem tem coragem de cortar" e fiquei eu olhando e agradeci. mas ela precisava falar. e falou uns minutos sobre o meu cabelo. colocando em mim coisas que eu não quero. simplesmente por ter cortado o cabelo. enfim. as pessoas.

daí que eu irei sempre que as amigas me chamarem. mas evito. locais onde me param para falar do meu cabelo. não me sinto muito à vontade onde não me misturo mais na multidão. não, eu não me iludo. eu sei que sou branca demais, cabelo curto demais, roupa estampada demais. eu sei que não me misturo normalmente. mas ali. com todo mundo de preto e cinza. com todo mundo de chapinha. me senti mais deslocada ainda. e não foi legal. um amigo me perguntou o que eu ia fazer num lugar tão hétero. lembrei a ele que eu sou hétero. então teoricamente faria sentido. mas parece que ele que estava com a razão.

15.11.16

fraca

me impressiona. seguir buscando, como um farejador. e me impressiona. eu ser fraca e frágil e não resistir a olhar de volta. e me incomodar com o que foi feito para me incomodar. me impressiona a forma como é feito. a diligência de buscar um a um. me impressiona que eu não me sinta bem para falar e me incomode ao ver um a um buscando. me cercando como se fosse me deixar sem saída. eu saí duas, eu saí três, eu saio quatro vezes. eu saio quantas vezes eu precisar.

falando isso assim, a tosse parece que quer me abandonar. o corpo parece que não quer mais brigar comigo. falando assim eu posso aparentemente retomar o controle. o controle. ele não existe. eu preciso lembrar que o controle não existe. e que o que busca não vai ser encontrado. e eu vou seguir buscando o caminho que não é mais controlado. e eu vou seguir andando e seguir fazendo. e um dia eu vou olhar pra trás e rir. e falar com leveza do peso todo que ainda sinto hoje.

a você, obrigada pela ajuda quando foi. obrigada por me fazer perceber. e vai pelo seu caminho. eu sigo aqui. fraca de vez em quando. é uma das minhas qualidades.

14.11.16

aposta

uma vez eu ganhei uma aposta que queria perder. amigo disse que leu meus posts. leu o que eu escrevia. e que eu ia me apaixonar. eu ri horrores. e disse que gostaria que ele estivesse certo. mas num levava fé nenhuma nisso. até porque, né, gente? pra se apaixonar a gente precisa conhecer gente. e eu não sou a pessoa mais conhecer gente que existe. vivo bem no meu buraco.

ele deu um prazo. 90 dias, acho. 3 meses. ao fim de 3 meses eu tava encerrando o semestre do doutorado. dormindo talvez 5 horas por dia. andando com amigos muito queridos. mas nenhuma paixão. nem sombra disso. eu gosto do que eu faço e não é muito comum presença masculina na minha vida. sabe aquela frase que geral fala que os homens são homoafetivos? que só se encontram com mulheres para sexo? pois anotem aí: eu ando homoafetiva. e nem ando encontrando com homens para sexo.

esse texto é uma exposição, eu sei. eu me exponho bastante na vida, sempre. mas na verdade é uma brincadeira. arthur, amigo. ajuda aí. vão fazer 180 dias. e nada de eu me apaixonar.

6.11.16

cachorro

sobre as mazelas da vida. como o cabelo que não para de sair da máquina: no prédio tem  dois cachorros que moram, acho, no terceiro andar. no prédio não tem elevador. moro no primeiro. os cachorros, todo dia por volta das 8h e das 20h, descem e sobem as escadas, uma hora depois, latindo. latindo todos os 3 andares para descer. latindo todos os 3 andares para subir.

eu adoro bicho. adoro cachorro, especialmente. tive bicho em casa a minha vida quase toda. quase todos os 40 anos. cachorros grandes, pequenos, de raça, viralatas, adotados, ganhos. gatos de todos os tamanhos. de todas as idades. periquitos. eu coloco garrafas de água pra passarinhos virem beber na varanda e fico sentada nela esperando as borboletas quando o tempo volta a esquentar. eu amo bichos. não do tipo que ama mais bichos que seres humanos. nada é mais legal que um ser humano, gente. nadica de nada. um ser humano dança. e pensa. e vem na sua casa no sábado de tarde cozinhar com você e falar de trabalho, de vida, de filme, de música. um ser humano crê e concorda, e discorda, e divide a cadeira e a vida. a gente ri com os outros seres humanos de uma maneira que mesmo a entrega dos bichos não pode substituir. enfim. tergiverso. eu amo bichos.

mas eu não aguento mais, gente. todo dia. chova ou faça sol. na mesma hora. dez minutos de latido. o barulho se escuta na casa inteira. outro dia esbarrei com ela. os cachorros latindo e descendo a escada. saí do caminho "não, eles só latem" cara. minha senhora. descer uma escada de pedra com eco e dois cachorros latindo enlouquece sem nada acontecer. outro dia minha mãe esbarrou com ela. "eles só latem porque não gostam do cachorro do vizinho" o cachorro do vizinho é quase mudo, gente. quase mudo. é um labrador pastel, sabe? mas aparentemente esses dois cachorros dos infernos são lindos e fofos. sou eu. é o vizinho. o meu irmão. o cachorro do outro vizinho. é a chuva. o sol. o porteiro. são os outros que fazem eles latirem. eu disse que ela berra em resposta pedindo silêncio? pois berra.

tudo isso pra perguntar a vocês uma coisa: tem algum floral. alguma pedra. algum reiki. algum cheiro no corredor. qualquer coisa. pra fazer esses cachorros se acalmarem? faz mais de ano que tô aqui, acho que ainda são jovens e terei ainda muitos anos deles latindo todo dia, de 12 em 12 horas.

5.11.16

love matters

love matters, babe. a gente anda a vida inteira tentando. ser independente. dar conta. família. amigos. trabalho. estudos. a gente vai dando conta aos trancos e barrancos e coisas vão ficando pelo caminho. e um dia, no meio do que devia estar no escaninho de estudos. a gente consegue uma coisa que parecia que não ia mais conseguir. porque tem gente que acha que passou da hora e nunca passou.

e a gente cozinha de novo pra muita gente como fazia muito tempo que não cozinhava. e abre a casa. e ri e dança. e pode abraçar e rir e ficar bem. esquecer até que tá com a roupa errada. que não gosta da roupa que tá usando. porque love matters. e se sentir bem como fazia tempo que não se sentia. porque em casa. porque no meio da confusão toda. achou outra casa. como já foi em outros lugares. e agora tá aqui. porque a casa muda. e mesmo depois dos quarenta. a gente pode descobrir o novo lugar e ser outra, de novo.

3.11.16

referências

– mas você já se acostumou?
– com que, gente?
– com esses olhares atravessados
– ih, menino, nem percebo...

eu queria dizer que é porque sou elevada. é só que eu não percebo se olham pra mim. se olham atravessado pra um amigo meu eu sou capaz de virar bicho. comigo? não olho. não vejo. não quero. tô bem. talvez isso explique minha incapacidade para o flerte. isso e o fato da cabeça estar raspada. não, pera.

ainda tem cabelo na máquina. ainda e sempre tá tudo uma zona. eu curto a zona, já disse? mas enfim. nem era sobre isso. era sobre eu não perceber. eu não vejo os olhares tortos. eu sobrevivi a roupas curtas demais, barrigas de fora demais, piercings demais. tatuagem. cabelo curto. cabelo vermelho. cabelo comprido. cabelo branco. maquiagem vermelha. boot. eu uso anéis demais. pulseiras demais. brincos enormes. o único jeito de sobreviver é não ver pra mim. a cara é feia? a cara deve ser feia. e o problema é da pessoa. desculpa. 

a gente aqui. que não quer ter o cabelo da capa de revista. o comportamento da capa da revista. o corpo da capa da revista. a gente vai levar cara feia. é um fato. cada um se defende como pode. eu me defendo não vendo. 

ainda insisto: os homens que me interessam acham mais bonito.

2.11.16

cabelo

eu sou dessas caricaturas. algo não foi bem. corto cabelo. pinto cabelo. mudo cabelo. algo foi bem. corto cabelo. pinto cabelo. mudo cabelo. meu cabelo funciona, então, como uma espécie de anel do humor. lembram disso, dos anos 90? era um anel que mudava de cor com a temperatura. em formato de smiley (que hoje em dia chama emoticon, acho) ou de yin/yang. eu tinha um de cada. eu sou uma árvore de natal de tanto enfeite.

bom. isso foi a introdução. acontece que no dia da eleição eu tinha prometido raspar se freixo ganhasse. não ganhou, mas eu resolvi raspar. pra gastar o mau humor. e deixar ele lá, enterrado, junto com a tristeza e a desesperança. a vida precisa ser leve ou não acontece. eu faço umas coisas sem metas. porque eu desisti do mba faz é tempo. a vida não é mba. não tem plano de negócios. enfim. tergiverso. eu passei máquina 4 mesmo com s. judas não tendo entregue a causa impossível. não precisava. posso dar a ele a careca. e ele me dá o que puder depois. vai que me dá vida amorosa?

daí pra não sujar a casa, pus um pano debaixo da cadeira e passei a máquina. eu falei que eu tenho uma quantidade brutal de cabelo? e que isso é ligado ao fato de eu não ter medo de fazer merda com ele? ele cresce de novo em quantidades brutais. com um fio de cada cor entre o branco, o louro e o castanho. então, né? pra que ter medo. e passei a máquina e montes de cabelo ficaram no pano. e no vestido e na cadeira. e o que eu fiz? enrolei o pano e o vestido e deixei na varanda. passei aspirador em mim e na sala.

no dia seguinte. eu não avisei a diarista, que veio aqui em casa, de como eu tinha raspado a cabeça. o que ela fez? colocou o pano para lavar na máquina, sem desdobrar. me pareceu um raciocínio até simples, na real. o erro estúpido foi meu, claro, de não informar a uma pessoa. paga para limpar as coisas. que aquela coisa tinha uma sujeira específica. pessoas não são adivinhas.

daí estou eu até hoje. com cabelo saindo da máquina de lavar roupa. tirei e limpei o filtro. minha mãe quis colocar o filtro sozinha na máquina enquanto eu tomava banho. saí do banho e tinha água até na sala (a casa é toda de um piso só, sem batente). e toma secar cozinha. secar área. tirar cabelo. o lençol lavado depois. tem cabelo. as roupas. tem cabelo. cara. nunca desejei tanto ser realmente careca.

10.10.16

já mudei

na verdade. eu quero saber o problema. em ser radical. em ser petista. em ser vadia. eu quero saber o problema. em não ser essa caixinha daí que você considera aceitável. porque eu não sou. eu tenho 40 anos e uso minissaia. e fui a reunião do pt, e fiz campanha desde 89. eu acredito em estudar e procurar entender as coisas. radicalmente. no sentido etimológico da palavra. porque eu não tenho raiz, mas as coisas tem. eu quero saber qual é o problema. porque a gente fica se desculpando e tentando dizer que não fala as coisas por ter lado. eu falo por ter lado, sim. e ter lado não significa estar errado. todo mundo tem seu lado. a maior falácia do mundo é a existência de um ser sem ideologia. de um ser sem lado. isolado. não estamos. escolhe aí. ou assume aí. mas para de tentar se colocar nesse papel puro. porque isso não te faz um pensador. te faz uma pessoa que não tem coragem. e quem não tem coragem tem medo do outro que tem coragem. porque é insuportável falar com quem faz o que a gente quer e não consegue fazer. a gente se sente diminuído. sai dessa. ouve o outro. conversa. tenha coragem. e tira as suas caixinhas dos meus pés. ou terei de trocar de biografia. pra por todas as etiquetas que tentaram me colocar na vida. vai ser longa. terão muitas. eu arranco todas. feito band aid. nem que pra isso eu me foda no caminho. eu não fico com elas. o meu caminho sou eu que faço. eu que determino. não me coloca no seu. não me diga que coisas eu devo me orgulhar ou sentir vergonha. não é você.

9.10.16

radical

eu tenho alguma noção de que esse texto não deve chegar a quem eu queria que chegasse. esses que acham que eu sou isso daí de radical. esses que acham que ser radical é algo ruim. algo que prevê quebras e perdas de todas as formas. esses que morrem de medo de mudança. eu sei disso. e acho uma pena. de algum jeito, eu queria falar com eles. segurar a mão e falar: cara. você me conhece. me vê na rua. é da minha família. estuda comigo. você sabe que eu não quebro nada (no máximo tropeço e caio). que eu sou uma ermitona um tanto tímida e de voz baixa. você sabe que eu escolho as brigas e já deixei na adolescência as brigas de bar e discussões na rua. você sabe que eu sou turrona mas me calo pra ouvir o outro. mas enfim. eu queria ser ouvida hoje. pra falar disso daí, dessa ideia do radical. do outro como fonte do medo.
eu posso falar que isso é filosoficamente estudado. a alteridade como fonte de medo e ódio. que isso é parte da engrenagem que gera o racismo. e parte da engrenagem que mantém o capitalismo. eu posso falar que um bando de coisa que eu não sei se você conhece. mas eu vou tentar falar sem ser assim. falar mostrando que não somos, todos, o outro do outro. os infernos dos outros. a gente não precisa eleger o outro assim com tanta força. o outro pode mudar. a gente pode mudar.
vem comigo aqui que eu te ajudo. mudar pode ser delicioso. a gente é mais forte como grupo. isso não é ser radical. é tentar acreditar no homem como medida de todas as coisas. no homem. acreditar que a gente pode. que a gente tem poder. o que eu busco, e tantos como eu, aqui, na caixa de ressonância e fora dela, não é uma quebra radical de tudo. é uma mudança, talvez radical, que permita que existam menos outros amedrontadores no mundo. é tirar de quem tem esse medo todo. mas me diz. por que você quer ter esse medo? acho que no frigir dos ovos, o que eu quero saber é isso: o que esse medo tem que as pessoas querem ele ao seu lado? ele é constituinte delas? tem gente que diz que sim. eu queria acreditar que não. que esse medo pode ser tirado. que podemos conversar aqui. e no mundo. para tentar entender. porque nesse instante. nessa hora. eu entendo muito pouco e busco muita coisa.

mas deixa. eu sou a maluca que gosta de roupa extravagante. que raspa a cabeça. que não entende você. mas eu quero entender. me explica. por que eu e os meus te ameaçamos? eu quero entender, porque eu não me sinto ameaçada pelos outros.

4.10.16

os pontos

hoje acordei querendo entregar os pontos. e vou dormir do mesmo jeito. hoje o dia foi cansativo, improdutivo, foi dar murro em ponta de faca. hoje de quem eu quis ajuda eu tive conflito. de quem eu queria apoio, eu tive nada. hoje eu fui sozinha, eu fui cansada, eu fui brigando. hoje eu quero dormir e esquecer o hoje. quero ir pra cama e que todos os hojes se apaguem e todos os amanhãs possam aparecer. quero chorar até dormir sem ter de explicar nada. quero me exaurir e não saber mais nem porque eu comecei a chorar. porque eu não sei. se eu soubesse, talvez eu estivesse louca. eu choro porque hoje, porque amanhã, porque confusa, porque nada. choro porque não passa, não anda, não resolve. choro porque cada minuto do dia foi lutado, porque nem o pokémon me quis, porque eu tô cansada. porque eu tô cansada demais. porque eu não aguento mais e ainda falta muita estrada pra andar. e a sensação de que sempre falta muita estrada e que a estrada não vai acabar e eu tô cansada. hoje eu vou dormir e amanhã a estrada pelo menos vai ter flor. espero.

7.9.16

o sul

o sul é o meu país. não essa coisa fria do sul do país. não o sur mítico da américa. mas o sul dos subalternos. do negro. do que não é ocidental. no sul não somos iguais todos. no sul podemos mudar sempre. no sul os caminhos não são cartesianos. eu renego a lógica cartesiana que me criou. é complicado falar isso assim, eu sei. é difícil. não é lógico. mas eu aprendi faz muito tempo que a lógica. ela é superestimada. sobretudo aqui. nesse espaço que, queiramos ou não, não se curva ao cartesiano. não temos ruas quadriculadas. não temos acontecimentos lógicos. não temos sucessão histórica. a pergunta que fica pra mim é: qual a necessidade de buscar isso? se podemos construir esse outro a partir do que temos aqui?

temos aqui, no sul, o ocidente e a sua negação em convivência. podemos seguir tendo. precisamos seguir negando. porque o ocidente, aqui, entra como violência e como negação de cultura. como brutalidade. não precisamos repetir eternamente essa brutalidade. nada disso é exatamente o que eu queria dizer. tudo isso é um pouco do que eu quero ser. do que eu busco. novas formas. novas coisas. novos eus. novos nós. muito mais bacana do que buscar ser o que não somos. o que não querem que sejamos. o que não seremos jamais. fora do ocidente. fora do cartesianismo. podemos muito mais. muito. nossos corpos podem muito mais.

5.9.16

ser guiada

quando eu era pequena. desde que eu me lembre. eu não queria ser menina. quer dizer. eu amava ser menina. eu amava coisas de menina. cores. saias. bonecas. unhas coloridas. cabelos longos. batom. eu nasci achando divertida a vaidade. detesto todo o resto. não gosto de cuidar de casa. não sei arrumar uma cama. não gosto de lavar a louça. só cozinho pra não morrer de fome. e, e isso é real, não faço carne porque tenho nojo. se morar sozinha, viro ovo-lacto vegetariana no mesmo dia. não gosto de passar o dia no salão e brigo no meio da rua. nunca fui uma boa mocinha. mas aprendi a ser mulher. me ensinaram. na verdade. eu gosto. fora a tal da menstruação. eu gosto. de usar as saias, as unhas, os enfeites, as tintas. claro que isso não é ser mulher. mas como nada define exatamente o que é. eu falo que é o que se aproxima dos signos considerados femininos.

tô definindo aqui. os que eu tenho. os outros eu não tenho. eu não sou delicada. não sou pequena. me recusei de forma bastante consciente e sistemática aos signos da mulher delicada. aos signos que me fechariam em uma definição. também me recusei aos da mulher intelectual, que deixa a vaidade de lado e não se penteia, e não faz as unhas. eu fui tentando achar os meus signos. e é sempre complicado buscar isso. um caminho e um espaço em que estamos, na verdade, sozinhos, porque ninguém está com a gente dentro da nossa cabeça, né?

e o meu caminho acabou sendo mais perto do pensar, da política, do questionar. e daí que não. eu não sei ser guiada. pode parecer que tem nada a ver. mas tem. e sabe o que é o pior? eu adoro dançar. eu tentei fazer aulas. eu tentei de tudo. eu sigo não deixando quase ninguém me guiar. e talvez essa seja a frustração da minha vida. não poder dançar.

1.9.16

pensar demais

eu penso demais. eu vivo na cabeça. eu narro o mundo porque pra mim ele só existe na narrativa. se eu estou calada. é porque eu queria estar falando. porque na produção de fala eu encontro sentido. não aquele sentido primordial que faz tudo parecer encaixado. eu deixo esse pros teóricos da conspiração e pros adolescentes que sabem o que fazem. mas sentido como em parecer que eu posso. não sei o que. mas posso. 

nesse pensar demais, nessa fala, nessa pasmaceira de elefante, eu me aflijo e entendo quem precisa fazer o tempo todo. e eu uso e gosto dessas pessoas para poder agir. eu preciso dessa amizade. da pessoa que faz. eu preciso desse contraponto. eu falo. eu penso. eu crio. eu não sei agir. eu sozinha não saio daqui. exatamente de onde estou. sentada na cadeira com o computador e meus livros. eu poderia jamais na vida sair daqui. eu não ajo por mim. eu fico. estacionária como um elefante (eu adoro elefantes.

como eu amo saber que tem gente que vira pra mim e fala: vamos? porque eu vou. sempre. a sensação do corpo de que eu posso ser guiada. de que eu posso sair do sofá. de que alguém pode me falar o simples. dar o empurrão que eu, sozinha, não me dou. agradeço a todos os amigos que estão junto e me chamam pra ir. me dizem que devo ir. me sorriem e me falam o que preciso ouvir, fora da minha cabeça e dos livros tão amados. o mundo não é isso aqui.

tudo isso pra dizer que. o que se repete é o sintoma, é a forma do trauma. tá tudo errado mesmo. foi golpe. não posso ficar em casa agora. preciso sair para poder estar em conjunto e elaborar junto o que é que posso fazer no futuro. a elaboração individual, no mais das vezes, é só isso mesmo: elaboração individual. resolve com o analista, com o rabino, com o padre. cura culpa e dizem, até lumbago. mas não tenho agora nem culpa, nem lumbago. tenho pressa, tenho medo, tenho melancolia. essa. essas. eu vou curar com os amigos, com o junto, com o comum. não é o momento da minha cadeira.

11.8.16

fuga

fuga é um tipo de música em que parece que as notas saem correndo umas das outras. pra mim, ao menos. mas hoje me disseram que tenho muita imaginação. eu adoro fugas. me deixam com uma sensação de leveza. daí eu fui ler um post na renata. e ele falava de casas de mapa astral. e daí eu pensei na minha vida. em que estou aqui fugindo do trabalho vendo o mark spitz falar e esperando o phelps entrar na piscina.

eu fujo. eu saio correndo. eu não quero saber. eu esperneio, eu choro e eu fujo. faço muito bem. estou aqui reclamando da vida. de estar só. de estar mourejando com tanto trabalho. ok, de trabalho eu não fujo. eu gosto. eu peço. mas do resto... não se preocupem. eu posso voltar. um dia eu volto, quem sabe. mas eu preciso seguir indo e mudando. é bom. vocês deviam tentar. o salto no escuro. deixando pra trás tudo. um dia eu ainda saio do rio. mas o rio... talvez seja meu único relacionamento estável de verdade.


5.8.16

alta cultura

não, sai daí. isso é infantilização. não, sai daí, não ouve essa música, ela é ruim. pera, isso é hiperssexualização. isso é bobo. isso é ruim. isso é infantil. isso é pouco sofisticado. isso não deve, não pode, não quero que exista. não devia existir, é isso.

então. assim. eu sou uma chata. uma chata que nasceu com 80 anos. uma chata que só ouve música dos anos 60. uma chata que só assiste filme velho (e adora musicais). uma chata que trabalha, vejam só, pesquisando literatura. mas a chata aqui aprendeu. na marra. debaixo de porrete se duvidar. que não. não tenho nada. zero. nadica mesmo. a ver com o que o outro assiste, joga, ouve, lê. não tem diferença alguma entre o meu luandino e o harry potter alheio. sigo preferindo luandino. é a minha vida isso daqui e eu gosto mais. você, espero, sabe do que você gosta. e, espero, não me ache mais chata do que achava antes porque eu prefiro o autor angolano pouco conhecido. eu gosto das brincadeiras com palavras e do engajamento político. eu tenho prazer vendo hello dolly. nem todo mundo ama barbra, eu sei. eu amo. a gente pode e deve amar as coisas. e devia não ligar pro que o outro ama.

me ensinaram. ali na marra. que alta cultura e baixa cultura. high e low brow, se vocês preferirem. são conceitos velhos. conceitos de quem acha que pode impor sua cultura aos outros. de quem acha que a cultura letrada e europeia é superior à cultura oral e não ocidental. e daí. tudo que não é ocidental entra nesse viés do ruim. do não valer. do precisar ser discutido e achincalhado. não. eu quero os barbarismos, diria manuel bandeira. todos. eu quero dançar e brincar na rua. eu quero comer com as mãos, fazendo capitão pras crianças perto de mim. quero ler também porque pra mim. e só pra mim. é importante. não precisa ser pra mais ninguém. vamos. a gente pode. entender que cultura é construção e coletivo. e também indivíduo e único. e que cada pedaço. cada cultura. cada jogo. cada livro. cada música. vale. mas não precisa gostar, não. pode só entender. que não é a sua. mas...

4.8.16

gatilhos



eu procuro gatilhos. esses tais emocionais. eu tenho pavor de viver escondida, segura, certa do que faço. quero gatilhos. quero ser confrontada com minha fragilidade eterna. ser colocada na condição de saltar no escuro. de buscar o afeto. eu amo gatilhos. eles me fazem pensar como cheguei aqui. eles me fazem lembrar que. apesar de tudo. ou por causa de tudo. eu sobrevivi e estou aqui. exatamente como eu queria. ou de forma alguma como eu queria. mas aqui. com meus pedaços feito cacos colados. como aquela restauração com ouro japonesa. ficam as marcas. as marcas são eu também. não tenho nenhuma vontade de esconder as marcas. eu conto as marcas. eu choro com elas. elas tão aqui. como as quelóides. eu tentei tirar as quelóides. voltaram. eu desisti de tirar minhas marcas.

eu não entendo esse lugar quente e seguro que as pessoas buscam. eu não entendo esse lugar sem nenhum incômodo. sem nada que fuja do esperado ou do pretendido. sem que nada fuja do controle. a falta de controle me faz falar demais. aqui e nas outras redes. a falta de controle me faz amar. me faz querer ter afeto pelas coisas. pelas pessoas. pelos estudos. pelos saberes. o controle aprisiona a gente como mais uma coisa. se tudo está e é controlado, onde iremos? em que espaço queremos ficar? a gente se limita, e não ao mundo.

eu não quero ter limites eu não quero que nada fora de mim me impeça de nada. eu preciso saber que. o gatilho. a mudança. é minha. eu vou ouvir. lidar. passar e seguir. porque o mundo pode tentar. mas não precisa conseguir. a gente pode ser mais forte. sempre. como o jasmim manga. que não é bem jasmim nem manga. mas que renasce sempre depois de perder todas as folhas. e segue sendo a árvore mais linda. tem uma no meu jardim.

1.8.16

ídolos

ídolos têm pés de barro. a gente aprende isso cedo. aprende que veio sozinho e sai sozinho desse mundo. tem gente que não aprende, eu sei. mas eu aprendi muito cedo. não sei se por causa da figura paterna... digamos instável (mas adorável, absolutamente adorável e sedutora). eu aprendi que ídolos são lindos. ídolos são brilhantes. ídolos são sedutores. ídolos são menores do que eu. eu quem vou acordar de manhã. eu quem vou fazer meu trabalho. receber meu dinheiro. correr atrás. eu quem vou lidar com minha gripe. quem vou ter de voltar pra casa. sozinha e bêbada. eu aprendi a me virar. a saber que os ídolos têm pés de barro. que os ídolos erram. que os ídolos bebem demais. que os ídolos morrem. eu não vou depender de quem morre. e todo mundo morre. e quem não morre a gente mata por dentro. eu ando sozinha. ídolos erram.

não acredito, assim, em ninguém acima nem abaixo. nesse caminho sozinho, tenho meus iguais ao meu lado. meus iguais riem comigo, comem comigo, dormem comigo. meus iguais podem saber mais ou menos do que eu, podem ser mais ou menos legais do que eu. eu jamais conseguirei colocar alguém no espaço de quem não erra, de quem eu devo seguir. eu não sigo. eu ando junto. porque eu não acredito em ninguém. e ninguém anda sozinho de verdade. a gente anda ao lado de pessoas absolutamente adoráveis, sedutoras e diferentes da gente. com quem a gente resolve e decide andar junto. não porque as pessoas são melhores do que a gente. porque elas saberão fazer algo ou poderão nos ajudar ou nos levar para um espaço onde as ruas são pavimentadas com ouro e pão de mel. a gente decide andar junto porque andar junto nos permite mais. nos deixa mais fortes. a gente decide andar junto porque o amor cria um elo mais forte que isso. porque junto a gente pode fazer outra coisa que não é o que veio antes.

junto a gente aumenta muito o nosso mundo. eu não gosto de ídolos.

24.7.16

não sei de nada

eu sigo não sabendo de nada. cresci achando que sabia, veja bem. a cada dia que estudo, sei menos. tô mais cansada. sabendo menos. eu sigo sabendo de nada. sigo buscando algo que não sei. seguirei buscando.

não me leve a mal. eu sei estudar. isso eu sei. sou boa em sentar a bunda e ler horas a fio. escrever sobre o que li. analisar. buscar coisas novas. eu gosto disso. tenho enorme prazer em falar sobre o que eu estudo. me incomodo quando não posso. sou chata. sou ranzinza, na verdade. mas enfim. é o domínio do que eu sei. eu sei falar sobre estudo. eu sei estudar. eu sei discutir e conversar.

o domínio do que eu não sei. e convenhamos, aos 40 anos, jamais saberei, é o das relações pessoais. sou um desastre. hora falo demais, hora falo de menos. hora entendo tudo errado, hora chego perto demais de quem não devia, e vez em quando sumo quando não devia. eu sou um desastre.

e acho que na verdade, todos somos. e seguiremos sendo. porque a vida da gente não veio com manual de instrução. mas de vez em quando tudo parece que dá certo. que se encaixa. e a gente segue esperando esses momentos. indefinidamente.

15.7.16

janis

o filme da janis. a história dela. como é triste. perceber que o buraco nunca é preenchido. nunca. que se tenta reiteradamente preencher. e ele segue esvaziando. o buraco segue voltando. e cada vez maior. e cada vez maior. a tristeza. o desamor. o buraco. enorme. enorme.

daí tem duas coisas. o buraco e quem permite o buraco. o buraco a gente tem. uns mais, outros menos. é aquilo que diz que você não merece. que você não é amado o suficiente. e nunca é suficiente. que você não é bom. e nunca vai ser. com o buraco. a gente tenta lidar. e vez em quando não dá pra lidar. vez em quando a gente se afoga nele. e faz parte da vida. e a gente sente culpa por se afogar no buraco. mas a gente na verdade não precisa se culpar. só precisa dar um jeito de lidar com o buraco. cada um tem o seu. comida. terapia. remédio. o dela era a droga. a droga e o palco preenchiam o buraco. quem sou eu pra dizer que não? só fico triste dela não perceber que tinha mais do que tinha.

e quem permite. não é só quem tem o buraco. é quem tá em volta e vê o buraco consumindo e não segura a mão. e não avisa que o outro tá se afogando. e não diz pra parar. o documentário fala como se a única pessoa assim fosse a tal namorada que foi a woodstock. mas todo mundo ali (menos o pobre namorado que não conseguiu mais estar perto) foi isso. todo mundo que usou ela. que não percebeu. que achou que era só temporário. nunca é. o buraco é companhia pra vida. ele não vai embora assim. e alguém precisa avisar a gente. que não repara sozinha. que o buraco tá maior que a gente.

13.7.16

o primo

precisamos falar sobre o primo. o primo que tá na sala e todo mundo finge que não existe. chama áfrica. ele tá aqui faz muito tempo. ele é parte do que nós somos, para o bem ou para o mal. e muita gente finge que não tá aqui. finge que não precisamos falar disso. afinal, temos negros na sociedade, é um fato. pra que falar sobre isso?

fui apresentar trabalho na argentina e me impressionei com a alvura da população. com a tentativa de ser ocidente. e me choquei com isso e me incomodei com não falarem. sobre a herança. sobre o genocídio deles. sobre o branqueamento.

mas na verdade mais verdadeira, o que tenho percebido cada vez mais é como nós, aqui, brasil, país que tem salvador. que tem enormes contingentes de adeptos de religiões de matriz afro. que tem carnaval. samba e axé. como nós fingimos que não temos nada a ver com a áfrica. não precisamos falar. tá resolvido.

não tá nada resolvido. não tem nenhuma ligação feita. tentamos apagar e branquear uma por uma. tentamos ainda efetivar o genocídio. no fundo no fundo, acho que muitos invejam a argentina, por ter sido bem sucedida no que falhamos. branqueamos a cultura. branqueamos a história. só falhamos em branquear a população. mas seguimos tentando.

não, cara. a áfrica é parte da nossa história. tem que ser. porque é dali que nós viemos. a europa não é e não deve ser o centro do nosso mundo. temos essa sorte. de não sermos ocidentais. precisamos aproveitar isso. precisamos levar adiante o nosso devir negro. precisamos saber o que se passa fora da europa. é urgente. é urgente porque precisamos interromper o genocídio. e isso faz parte dessa interrupção. faz parte olhar pra trás e saber de onde viemos. você já olhou hoje? é importante saber. quem a gente é. eu canso de falar que não sou planta pra ter raiz. mas eu sei de onde eu vim. e isso me ajuda a saber pra onde eu vou.

o brasil veio disso daí. da escravidão. da áfrica. de um sistema cruel e desumano. não só utilizamos, como fomos mercadores de escravos, e fomos escravos. entreposto. o porto do rio, o cais do valongo, foi o maior porto escravagista do mundo. o primo tá na sala. a gente precisa falar dele. sob a pena de jamais podermos saber pra onde vamos.

11.7.16

você

eu sonhei com um nome para você. como se você fosse algo além de um rapaz que eu já vi na rua e achei interessante. como se eu te conhecesse. você tinha um nome. e a gente conversava. e você seguia interessante. eu gostei do meu sonho e sei que amanhã eu não vou mais sonhar com você. porque só fiz isso porque te vi ontem na praça. mas é gostoso colocar isso. falar isso. eu sonhei com você. e na verdade a gente só conversava e eu sabia o seu nome. o sonho era banal. e eu sei que seguirei sem saber quem você é. porque não temos amigos em comum. porque quando pensei que podia chegar e tentar puxar conversa, sua amiga, uma menina muito bonita, mais nova que eu mais de década, certeza, se interpôs no caminho e deixou claro que o território não era meu. eu passei da idade de querer provar o contrário. eu só sorri e saí de perto. fiquei num espaço para te ver. mas sem entrar no espaço dela. eu não sei o que ela quer. nem o que você quer. você me pareceu flanar ali. flertar com qualquer semovente. eu acho isso interessante. pessoas sedutoras. que não sabem sair desse papel. na verdade eu acho que é interessante só observar isso. é meio engraçado ver o gasto de energia. as caras, os abraços, as mãos, os movimentos de corpo. a sedução é uma arte que eu não domino. mas que admiro muito. aqui, do alto da minha dureza e falta de jogo de cintura, eu acho lindo quem sabe seduzir. aplauso e rio. não precisa gastar seu repertório comigo, não. mas me deixa ficar olhando de longe e me divertindo criando toda essa narrativa inexistente pra sua vida. que é muito divertido criar narrativas.

10.7.16

meninas

eu não devia, mas não paro de assistir gilmore girls em cada minuto que não trabalho ou não tenho eventos sociais imprescindíveis. cada momento que eu não vejo as meninas eu acho que errei em algo. então eu estou neste momento em algum ponto da segunda temporada e penso algumas coisas, ao rever em ordem e já conhecendo a história inteira.

1. amy sherman palladino é maravilhosa e realmente pensou no arco completo de cada um dos personagens desde o primeiro episódio. todos, até os doidivanas de stars hollow tem passado, presente e futuro, tem crescimento, são influenciados pelos acontecimentos. enfim. e dá pra ver, ao reassistir as cenas, onde ela quer chegar com aquilo. dicas o tempo todo, por exemplo, que o dean é um machistinha chato. que ele acaba sendo. que lorelai e luke terão futuro juntos. que emily sabe que errou e só quer conseguir consertar.

2. diante disso, cada personagem tem seus erros e acertos. rory para crescer escolhe um homem errado depois do outro. sabemos que a última temporada não era o que amy sherman-palladino queria. mal posso esperar pelo fim que ela queria para rory. para saber se ela tiraria o logan da história. se ela deixaria a menina solteira. se ela faria a menina aprender alguma coisa com logan. como aprendeu com jess e com dean. tudo ali é aprendizado pra personagem que começa com 16 anos. quero saber de lorelai também. e de luke. também de emily. como o tempo as ensinou. ansiosa por setembro.

3. em último, mas não menos importante. é um seriado sobre mulheres. meninas, como diz o título. é um seriado feito por, para mulheres. com personagens mulheres. sobre amizades entre mulheres. é um seriado mulherzinha. com tudo de bom e de ruim. com amizades adultas e adolescentes. com universo feminino. com homens que aparecem e somem. com trabalho, relações, crescimento, peitos, cores, saias, risos, álcool, cabelos, maquiagem, casamentos, separações. mas que não quer saber como os homens se sentem. somos nós, mulheres, ali na tela. ok. mulheres de connecticut talvez sejam um tipo específico de mulher. mas podemos nos identificar. com a cdf que não sabe lidar com meninos (oi, meu nome é antonia e eu sou uma paris). com a menina que quer ser perfeita porque acha que a mãe é uma doidivanas. com a mulher que quer consertar tudo porque foi uma adolescente rebelde. com a mãe que quer se reaproximar da filha. com a profissional que se apaixona. com a menina que não sabe lidar com a mãe severa. com a mãe severa. com a professora de balé. com a namorada que percebe que o namorado não gosta mais dela. cada uma delas é uma mulher inteira. e isso é raro na tv. e a grita toda, gente. tanta gente revendo. é porque é bom demais se ver na tela. desculpas, eu sei, tem parte minha que só gosta de lembrar de quando eu tinha 10 anos a menos. mas eu nunca vi gilmore girls jovem. eu já era velha. eu já sabia que a rory era chata. eu só curtia, como curto, ver mulheres como protagonistas. da vida delas.

6.7.16

escarlate

tem esse livro, né? a letra escarlate. hester com sua letra escarlate bordada. para sempre. por um erro pregresso. ok, a gente sabe que não é pregresso. mas ela vai presa. ela paga. e segue com a letra escarlate. ela é ostracizada. e segue vivendo com a letra vermelha bordada. adúltera. fora do padrão moral da sociedade. deve ser sempre lembrada do seu erro, jamais podendo voltar a uma vida comum.

a gente acha que o mundo mudou. que passamos a aceitar mais a diferença. que... enfim. daí aparece uma pessoa que errou e todo mundo sai correndo para pregar a letra vermelha na testa. cada um apegado à sua moral, que certamente é a mais correta. mas cuidado: se for gay, vai ter letra na testa. se escorregar num comentário, vai ter letra na testa. se usar a roupa errada. letra na testa.

e seguimos repetindo isso. como se ainda estivéssemos no séc. XVII. tirando do nosso convívio e marcando a ferro e fogo qualquer um que não esteja de acordo com a nossa moral. não é apenas questão de não querer estar perto. é de querer que a pessoa seja alijada da vida do comum. porque ela é tóxica. ela não deve poder andar com os outros, os puros, os que aprenderam a moral dos tempos. é um tanto puritano o pensamento.

eu que penso que moral é hiperestimada. eu que não sou boa. eu que erro tantas vezes. eu que não sei me comportar (nem namorar, mas isso é outra história). eu tô pedindo aqui. coloca a letra vermelha aí na minha testa preventivamente e me larga. me deixa ir ali fazer o que eu quero. eu vou pedir desculpas quando achar que falei bobagem. ou que errei. mas eu sei que pra vocês isso não vai ser nada. não vai adiantar. então me deixa aqui com a letra na testa. se duvidar, tatuo de uma vez.

5.7.16

não

faz isso não. não assim. assim me constrange. você não fica moderno e descolado. você me constrange. é. eu sei. eu jogo uns nomes. eu falo em teorias. imagina o pecado. eu detesto parecer que falei as coisas do nada. eu pensei antes de falar. eu trabalho com isso, sabe? não, você faz o que quiser da sua vida. eu estudo. eu não sou melhor por isso. só conheço isso daqui. certeza que você conhece mais o seu trabalho do que eu. sei nada de construir casas. de arquivar coisas. de cálculo. sou uma besta em um bando de coisa. não, cara. para. não existe gente culta. porque cultura todos temos. cada um tem a sua. tem o seu saber. para. eu sei algumas coisas. sei que reforçar estereótipos é uma espécie de racismo. mesmo que sejam estereótipos positivos. a gente reforça que a pessoa é para o que nasce. e ela não é, sabe? a gente é para o que a gente se faz na vida. apesar de eu estar aqui sendo o que eu nasci para fazer, depois de muito esperneio, a gente não deve se fechar nisso. nem achar que o outro deve se fechar. a gente é para o mundo. para o que a gente vai construindo aos poucos. aos pouquinhos. com o que nasceu. e com o que os outros trazem pra gente. lembrar de não se fechar pro que os outros trazem pra você. e vez em quando a gente faz merda. e fala idiotia. e devia ter mantido a boca calada. e morre de vergonha. mas cara. faz isso não.

isso também vai passar.

tem isso em inglês. "this too, shall pass" isso também vai passar. é aquela coisa. tem coisas que magoaram a gente. que deixaram a gente parado num passado que não devia prender. tem coisas que nos angustiaram, irritaram, entristeceram, enfim. mas vai passar. porque chega uma hora em que o vazio substitui. e você vê a pessoa na rua. e na verdade você demora a lembrar quem é. e fica criando uma outra narrativa para você. melhor do que admitir. que passou. e esse vazio ficou. e você precisa arranjar outro incômodo. que esse. já era.

sabe aquele cara que te fez mal? aquela menina que foi babaca? aquela festa em que você pagou o mico da vida? o problema de saúde que demorou a sarar? o luto pela morte de alguém querido? tudo isso vai passar. tudo isso vai de repente ser uma lembrança. uma narrativa como a de qualquer livro. um carinho sobra. uma nostalgia do que a gente efetivamente viveu. uma felicidade de se perceber, apesar de tudo, viva.

até lá. até passar. a gente esperneia. corta cabelo. pinta cabelo. deixa as pernas cabeludas. depila mais do que devia. vê filme no netflix 4 dias seguidos. malha feito louca todos os dias. não sai dos livros. chora. bebe. mas passa. e quando passa. a gente se sente bem de ter feito tudo isso. porque tudo isso. o choro, a tinta, a cera, o filme... tudo isso ajudou a passar.

e isso daí, amore. isso daí também vai passar. e a gente vai se abraçar e rir vendo o pôr do sol no arpoador. dar um mergulho no mar de verão. e ir pra casa dormir o sono dos anjos. sonhando com coisas que ainda não passaram.

1.7.16

mel

hoje eu tomei iogurte com mel.

não sei se é a lua. se é algum conhaque. mas ando nostálgica e um pouco comovida. lembrando de quem não está mais comigo. iogurte com mel me lembra a minha avó. pra quem não conheceu. ela era linda. mais bonita que a ingrid bergman. linda. ela ria e a sala parecia mais leve. não era de riso frouxo, era uma pessoa séria sobretudo.

ela gostava de algumas coisas. e se vocês me verem comendo ou fazendo elas. podem saber que faço em homenagem. em memória. ela gostava de iogurte com mel. de caldinho de feijão antes do almoço. de pimenta. até chorar com a comida. gostava de silêncio. e eu tive muito ciúme quando vi que os netos mais novos podiam fazer barulho. a idade a deixou mais suave. ou cansou de ralhar conosco, não sei.

ela gostava de roupas. extravagantes. o que é bonito tem de ser visto, ela dizia. não nascemos para nos esconder. para passar desapercebidos. ela gostava de chopp. isso eu só descobri depois. eu achava que ela gostava de beber só o vinho, só em família. um dia ela reclamou que eu nunca a chamava para beber com ela. e lá fomos nós num boteco. comer bolinho de bacalhau e beber chopp e conversar besteiras. eu com 20, ela com 70. algo assim. conversando sobre moda. sobre cinema. ela gostava do bergman e de cinema iraniano (eu detesto cinema iraniano).

avó todo mundo tem duas, eu sei. e avô também. eu sei que eu tive os 4 de praxe. um morreu muito cedo. o marido dela, que ela amou tanto, amor que conheceu nas cartas. os outros dois eu nunca tive tanta proximidade. ela era a Avó em caixa alta. e eu tive o prazer dela perto muito tempo. mas ela ainda faz falta. tinha coisas que eu penso. que eu sei que só ela entenderia.

30.6.16

de repente

de repente esfriou. de repente eu me vesti. de repente eu não sei o que estou fazendo. pera. isso eu nunca sei. de repente eu me assustei. de repente nada. tudo na minha vida é lento. sou um paquiderme, eu disse.

como devagar, ando devagar, me mexo devagar. quase em câmera lenta vez em quando o mundo passa na minha frente. anos pra decidir. anos para fazer. anos para mudar. de repente.

agora estou eu. de repente onde eu me sinto confortável. de repente com as coisas andando. de repente com amigos que eu gosto de ter. de repente com um caminho que me interessa. de repente dando oi para ele. de repente. nada de repente.

e de repente me vem um eco do passado. de repente me assusto. de repente saio contando. de repente não era nada e volto pro trabalho.

de repente volto a ouvir essa música. de repente não é mais sobre você. de repente esse vazio não existe mais. porque de repente ele virou cicatriz. e cicatriz também é parte da gente.

27.6.16

urgência

hoje acordei diferente. sem urgência. eu sei. isso deveria ser algo tranquilizante. mas não é. urgências criam ação. ações enterram angústia. eu não preciso agir e não sei como fazer isso. não tem nada que eu precise fazer nas próximas horas. tá. tem trocar o lençol, lavar roupa, faxina. mas isso não é urgente. isso é diário. eu falo de urgência.

acho vez em quando que escolho as pessoas que preciso na vida por essa noção de urgência. cada um de nós coloca ela em uma coisa, repara. mas a gente sempre tem. e tem quem diga que isso é paixão. não sei se é. é um chamado. uma necessidade. uma urgência. pode ser por um livro. uma religião. uma pessoa. eu escolhi ter urgências. ou elas me escolheram. e quando elas saem de mim o vazio que fica é muito assustador. e preenchido com outras urgências.

na vida, eu aprendi a domar as urgências. a pedir que elas me esperem, que tenham seu tempo. aprendi que algumas amigas seguem sendo urgentes como eu. e por isso sigo querendo estar ao lado delas. porque mesmo com todo o tempo. toda a distância. ainda podemos ser urgentes juntas. ainda podemos nos abraçar e reconhecer que nos demos a mão por isso. porque somos em busca. não uma busca perdida. uma busca por algo que se adeque a essa urgência.

quando a gente perde isso. quando a urgência desiste da gente. é um pouco de vida que sai. a sensação pra mim é essa. de algo que esvazia. preciso inflar de novo. puxar o ar. segurar o ar como um balão. em tensão. tensão de superfície. onde mantenho tudo com o ar. como a estenose que nasceu comigo, a tensão de puxar o ar pra dentro quando ele falta.

23.6.16

afeto

uma vez, num exercício de retórica na pós de interpretação, tiramos papéis para falarmos sobre um assunto. eu tirei afeto. e uma colega achou que fazia sentido. na minha cabeça de quem leu demais, não entendi porque para ela fazia sentido. afinal, afetamos uns aos outros o tempo todo. ela quis dizer que eu era afetuosa, gentil. que eu me preocupava com as colegas, o que não era comum.

hoje fui almoçar com uma colega de turma. da escola. eu acho que não sei dizer quando eu não conheci essa turma. éramos poucas. poucos. éramos quase todas mulheres. éramos unidas. éramos felizes. tanto quanto adolescentes podem ser felizes. falamos das amigas em comum. e eu percebi de novo. que eu mantive alguma ideia de onde estão as colegas. eu nunca fui a melhor amiga de todos. mas eu sou ligada aos afetos. eu me apego ao que me afetou. eu sei onde estão os colegas. mesmo sem falar com eles todos os dias. e essas pessoas são amigas. mesmo sem falar todo ano.

uma está em brasília. outra em paris. outra aqui do lado em laranjeiras. um em são paulo. somos todas uma só, ela disse. a gente aprendeu com a gente a se portar nesse mundo, ela disse. você não julgava as nossas loucuras ela disse. e você sempre foi careta. você defendia as loucuras da gente, ela disse.

eu me senti acarinhada. e sem saber porque. depois eu entendi. existe algo em amizades de mais de vinte anos. algo que a gente não pode definir. algo que a gente não pode controlar. a gente sabe quem o outro é. e o outro muda. corta cabelo. cresce cabelo. casa. separa. tatua. muda. mas aquele afeto ali. aquele original, o que criou a gente adulto. tá aqui, na mão. renasce se encontra.

encontrar maria foi reencontrar comigo. foi lembrar o que a gente era. o que a gente ainda é. somos muitas. somos poucas. estamos aqui, sempre, umas pelas outras. uns pelos outros. não vamos a lugar algum. e não mexa conosco. a gente não anda só. a gente é multidão. de poucos, mas multidão. e é sempre bom saber disso. que eu tenho elas. eles. e elas me tem. eles.

eu aprendi que não sou sozinha.

17.6.16

jeito

daí eu fui no gato curioso lá. e no gato curioso me perguntaram se o brasil tem jeito. e eu não quis responder pra não ser grossa. e insistiram. falando em república de bananas e tals. e eu respondi e enfim. me alongando.

eu não sei o que é ter jeito. porque o ter jeito implica em que precisa ser dado um jeito. que está errado do jeito que está. eu não acho que está errado. não errado como quem me perguntou qual o jeito. eu acho que o brasil é um país que foi colônia e que vive, ainda hoje, da violência e da necropolítica resultantes de não sair do ciclo de violência imposto pela metrópole. pera. me explico. eu li fanon e ainda não me recuperei. eu li mbembe. eu li um bando de coisa. e eu vejo as coisas pelos olhos de quem eu li. porque eu faço isso vez em quando. e o tal ciclo de violência. ele pode ser quebrado quando a gente cria algo novo, que não é o mesmo que a colônia era.

o brasil ainda é a colônia. como o são angola, moçambique, nigéria, colômbia, argentina... somos todos a perpetuação dos esquemas. a continuação do trauma da violência. temos todos a capacidade de criar algo novo, não ocidental, miscigenado não mais como a metrópole quis que fosse. eu acredito nessa capacidade de elaborar que a cultura pode nos dar. não sei economicamente. não analiso economicamente, porque não sei. o que posso falar é no que acredito. culturalmente. porque a cultura não ocidental a gente tem. falta é acreditar nela de verdade.

15.6.16

ser menina

quando eu era pequena. quer dizer. quando eu era menor (isso é um amigo da família que diz. que eu nunca fui pequena, não posso falar inverdades). eu amava um texto chamado mulherzinhas. louisa may alcott. teve uma peça de teatro com ele ali no shopping da gávea. mulherzinhas.

eram 4 personagens, crescendo nos eua da guerra de secessão. eram 4 mulheres, claro. eu lembro que na peça a sílvia buarque era uma delas. a que morria de tuberculose. mas ela era a personagem fraca. a que eu não gostava. eu gostava da jo. não lembro quem fazia a jo. no cinema era a winona ryder, acho.

a jo, gente. ela não queria ser menina. ela queria ser jornalista. e meninas não podiam ser jornalistas. a jo cortava os cabelos para vender porque a família tava dura que o pai tava na guerra. a jo era tudo que eu queria ser. talvez a jo seja um pouco a minha mãe e eu seja a luiza, morrendo de tuberculose.

eu me identificava com a jo. eu não entendia porque eu tinha de ser menina. apesar de ser brutalmente vaidosa. e de ser de uma família que jamais me impediria de ser o que eu quisesse ser. inclusive solteira. enfim

tudo isso porque me perguntaram sobre feministas e autoras que eu curto e eu lembrei que. louisa may alcott. leiam sobre ela. faz é muito tempo. ela tava aí escrevendo sobre meninas que não casam e vão pra cidade virar jornalistas. faz é muito tempo, e as pessoas precisam lembrar disso. que nós, mulheres, existimos nesse mundo de homens. e hoje eu ouvi um colega falar "eu penso nas mulheres da europa, que eram casadas, a não ser que fossem aristocratas, não eram cosmopolitas" e peço que lembrem de jo. que era um alter ego de louisa. lembrem que no séc XIX nós já existíamos.

chega de fingir que as mulheres só existem como indivíduos a partir da segunda metade do séc. XX. isso também é invisibilização. a gente sempre teve aí. em menor número talvez. mas sempre teve. e não vamos a lugar algum e vamos estar cada vez mais. cortando nossos cabelos. usando calças. deixando os cabelos longos e usando saias. a gente não vai a lugar algum, amigos. se acostumem. somos aqui. pertencemos aqui. nossa minoria política vai continuar fazendo barulho. continuar se tornando isso daqui que é o outro de vocês. um dos outros. vocês, homens brancos ocidentais. vocês são um universal que cada dia existe menos. nós, todos os outros. nunca não existimos, mesmo contra toda a sua narrativa de universalidade. nós aqui estamos. e não esperamos ninguém.

música

não sou uma pessoa musical, ou ao menos o que se costuma chamar disso. inclusive, sou das raras pessoas que não trabalha ouvindo música. na verdade, isso é porque eu começo a digitar a letra da música. melhora. se a música é em inglês, digito em português. se é em português, digito em inglês. daí eu não sou uma pessoa musical. 

enorme introdução para o nada. para variar. sou prolixa. engraçado que não sou em trabalhos acadêmicos. onde eu deveria ser. enfim. outra enorme introdução. tudo isso só para falar que: hoje eu tive uma aula que não deveria ser nada além das outras aulas. e falamos sobre o livro Alzira está morta e sobre África e Salvador e Atlântico Negro e diáspora, essas coisas que fazem parte do que eu tô tentando entender do mundo. e daí a orientadora falou dos blocos afro. algo que eu soube um dia, acho. e anos 70 e 80 e Salvador efervescente. e a importância do Egito negro para tudo isso.

saí da aula faz 3 horas já. ainda me pego cantando "mara mara mara maravilha ê/ egito, egito ê" e me pego rebolandinho aqui na cadeira.

resumo da ópera: como os deuses, não acredito em estudos que não dancem.

13.6.16

estreitamento

estenose quer dizer estreitamento. nasci estreitada. provavelmente por esforço no parto, dizem. no parto que não pode ser natural, que foi emergencial e no susto. e sobrevivi. com um nó no pescoço (literal, se eu fico cansada ele reaparece). umas manchas de nascença (que aparecem quando eu fico irritada/cansada, na testa, na nuca. umas bolotas vermelhas). e uma estenose pulmonar. vulgo sopro no coração. que hoje em dia é assintomática.

minha mãe vai ficar muito impressionada. e dizer que não sabia que eu tinha ficado tão mexida com isso. que não achava que eu tivesse uma infância tão diferente. e nem tive. eu era a mais velha de 9 irmãos. isso em si era mais exótico do que ser cardíaca. mas eu era cardíaca. eu não conseguia nadar tanto quanto os irmãos, nem tão rápido. eu não conseguia aguentar o frio. eu gripava. eu tenho um cardiologista desde que nasci. quantas pessoas podem falar isso? eu tenho de ir todo ano ao cardiologista desde que nasci. mesmo sendo assintomático.

na verdade. eu ainda gripo. eu ainda acho a sensação de gripe a mais infernal que um ser humano pode viver. eu não sei lidar com isso. eu odeio lidar com isso. a falta de ar me lembra a hora em que o meu corpo desiste. meu corpo desiste. o de vocês desiste? ele me avisa que vai parar e para. meus desmaios, no entanto, não são por esforço. são por pressão. o meu corpo compensou muito bem a estenose. eu tenho pressão muito baixa. quando tô irritada, chega a 12 por 8.  tergiverso, pra variar.

meu corpo me avisa que chega. e cai gripado. e eu mal consigo levantar e fazer um chá. eu odeio essa sensação. de peso em todos os membros. de olhos sempre fundos. de ar sempre faltando. uma hora passa. eu vou ao cardiologista todo ano. eu não tenho nada.

11.6.16

viagem

sou dessas que precisa sair. para voltar. já disse algum dia aqui. sou apaixonada pelo rio desde pequena. apesar de ter morado fora quando pequena. fora do rio. em fortaleza. eu volto. preciso do rio como preciso de mim mesma. acho que me confundo com ele. com o por do sol na praia. com o samba nas quadras. com a feira na rua. depois de muito tempo sinto falta até da av. brasil, gente. toda a confusão de gente. de caras fechadas e de abraços abertos. de gente chiando. ontem mexeram comigo aqui. que o meu chiado não nega. porque eu chio falando portunhol. ixpetáculo.

eu saio e venho tentar ver o outro. eu preciso tentar analisar o outro. como eu me analiso. eu demorei a me tornar acadêmica. pesquisadora. mas eu entendo que é o que posso fazer. olhar. ver. pensar. só funciono assim. posso ir ao futebol. adoro beber cerveja. me sinto bem demais no baile charm. amo até touradas, vejam vocês. nada é acrítico. nada é do nada. tudo eu posso discutir e até rever minha posição. tudo é passível de ser compreendido.

dito isso. nada é tomado pelo seu valor de face. não acredito na primeira coisa que ouço. vou pesquisar e tentar entender. tô aqui com uma gata cega e surda no colo. falando com amigos pela internet. revendo um trabalho. conversando com gente daqui sobre temas que me afligiram. os apagamentos. os pactos fundadores das nações. tentando entender o dos outros. a mim interessa isso. é parte da viagem. é parte do conhecer. não conheci nada se só vi o lado bom. o rio é uma merda. mas é maravilhoso. e assim falo de muitos lugares.

aqui na argentina, reitero, me incomoda o extremo nacionalismo e o apagamento dos negros. mas eu estudo isso. eu terei isso percebido onde quer que eu vá. é o meu jeito de poder ir. não digo que isso não seja um problema em outros lugares. mas é aqui. comprei uns livros sobre. (o mundo, ele existe nos livros, vocês sabem, né?) e vamos ver o que eles dizem. segunda volto ao rio e teremos de volta nos meus olhos peles diferentes. e verei de novo barulho na rua. e gente de perna de fora. e me sentirei em casa. porque toda análise pra mim se borra em casa. eu tenho meu ninho. e fico feliz. ainda preciso ir pro que analiso. quem vem comigo andar a áfrica?

6.6.16

coração

sexta me queimaram a mão com cigarro. fazia talvez uns dez anos que eu não me colocava assim. num lugar em que podem queimar a minha mão com cigarro. eu lembro ainda quando minhas saias tinham todas furos de cigarro. meu e das amigas. das noites dançando. na dr smith. na sweet home. na bunker. na bang. no ballroom. na fundição. noites sem lei do cigarro em que o cabelo fedia a fumaça a semana inteira. noites dançando de olhos fechados e sorriso solto, com as bolsas no chão. amigo chamava de ebó de discoteca.
dançar deixa o corpo da gente mais inteiro. sabe que eu nem sinto falta de falar quando eu danço? e isso quer dizer alguma coisa, eu prometo. eu paro de falar quando danço. eu rio. eu gosto de dançar em par. mas o cara tem de saber guiar. porque eu sou ruim de ser guiada. nem todo mundo consegue. daí eu descobri esse lugar. ao ar livre. com músicas que eu curto dançar. e eu me sinto ali como me sentia nas festas em que eu era jovem. podendo fechar os olhos e podendo me queimar. porque fechar os olhos é autorizar o mundo a acordar a gente desse transe. e ele acorda.
e minha mão queimou. e hoje eu olhei pra bolha que ficou. acinzentada, como sói acontecer com bolhas criadas por cigarros. e achei que ela tem forma de coração.
então. queria dizer. que me senti meio que acalentada por isso, por mais irracional que possa ser me sentir reconfortada pela forma de uma bolha. mas um coração pode segurar as nossas pernas. e tendo um que veio com defeito. é sempre bom ter um externo.

4.6.16

nada

não foi nada. um esbarrão na rua. e as coisas parece que são alguma coisa vez em quando. que poderiam ter sido. mas não foram. o momento não é de nada ser. é dessas incertezas. mentira. a vida tem me dado certezas. uma delas é de que eu sou sozinha. não sozinha triste. não sozinha maluca. sozinha. eu curto me trancar e não abrir a boca. não sair de casa. deitar no sofá e ficar ali. eu curto um bando de coisa que não dá pra fazer se eu desistir de ser sozinha. e não quero abrir mão disso. não agora. não quero colocar em causa. discutir. conversar. ceder. quero essa zona que tá aqui em volta e aqui dentro.
mas o esbarrão. a mão doendo. o olhar. me fizeram ficar assim. feito alguém que quer ceder essa zona e abrir espaço. e não foi nada e não será nada. mas eu lembrei por um momento que tem um lado que acha bom. o par. as horas. o encanto. que sabe que não tem nada demais isso. que o prazer é bom. eu tô aqui enrolada. pensando em mil coisas. e de repente essa lembrança de que pode ter o encanto. desestabiliza tudo. e o chão volta a sair um pouco de debaixo dos pés da gente. como que a gente faz?

31.5.16

conceitos

sobre diferenças na verdade. conceito pode partir de generalização, mas não é a mesma coisa. conceito é construído após análise, discurso, debate, construção. conceito não é tão vazio quanto parece. talvez seja difícil acessar um conceito sem conhecer o debate que o antecede. mas é pra isso que seguimos aqui. sendo acadêmicos chatos. tentando explicar. repassando. estudando. relendo. debatendo. tô aqui falando dos conceitos todos. com amigos. comigo. para poder depois explicar. repassar, sair do mundo da academia.

dito isso. o erro é meu e dos meus se um conceito é mal compreendido. é tratado como mera generalização. é tratado com raiva. com desprezo. o erro é meu e dos meus quando a intelectualidade é vista como um entrave a algo. quando nós somos o problema que atrapalha a vida. e não a chave que ajuda a entender.

deixa que o pensamento abra a porta. que o conceito te mostre outra forma de ver a vida. que as palavras possam ter mil significados. que a ressignificação te faça ver outros arco íris. deixa que a provocação da palavra te faça trilhar outro caminho e que isso seja bom. tão bom quanto falar com um amigo. quanto beber uma cerveja. quanto malhar ou ir na praia. deixa que o raciocínio e a dúvida te coloquem em contato com o que você não conhece. que o mundo seja maior. o mundo é sempre maior do outro lado, acredite. acredita que reler e tentar entender o ponto de vista de quem criou a teoria pode te fazer até seguir discordando. mas entender de onde veio. e entender é libertador. saber as regras deixa a gente vendo a estrutura do mundo. tenta ver. é meio como a escolha do neo. a gente quer a azul ou a vermelha? não precisa ver toda a estrutura do mundo. ninguém vê toda. mas é bacana saber que ela existe.

30.5.16

família

detesto família. não sei lidar. sou uma pessoa de amigos. aquariana, alguns diriam. chata, digo eu mesma. nem sempre tenho o que falar. nem sempre me sinto muito à vontade. mas era casamento do meu irmão. e nem sempre eu caso um irmão. alguns vão dizer que, com sete irmãos, isso nem é verdade. mas tergiverso. é meu irmão. e é caçulinha, sim. apesar de ele ser o mais velho, pra ele mesmo. mas é mentira. a mais velha sou eu. e caçulinhas são eles todos. pra vida inteira, amém. darei bronca, abraçarei e direi que são lindos. podem se acostumar, se não se acostumaram ainda. mesmo que bissexta, num desisti não desse papel. apesar do outro irmão ter dito "na verdade família pra você é só a nuclear. você ignora o resto, apesar de entender. tem mais ligação com os amigos"


voltei pro aquariana. e pior que é verdade o estereótipo aqui. os amigos que carreguei pro dia a dia. os que me conhecem o meu trabalho. os que eu seguro a mão se achar que precisam. os que eu não deixo de ver por nada. são meu porto seguro muito mais do que a minha família. vejam bem. eu gosto deles. eu só não tenho essa ligação atávica. eu acho lindo eles terem. enchem meus olhos de lágrimas com tanto carinho. eu percebo que o afeto entre eles e comigo é muito real. e eu quero poder retribuir. só não sei fazer isso. 

e daí eu que nem ia falar tanto. queria só dizer que. as diferenças nunca cessaram. mas elas são boas. e eu posso ser capaz de um amor que não é o que eles esperam. não é derramado. tátil. de riso frouxo e corpo aberto. essa não sou eu. eu acho isso lindo. eu admiro isso neles. eu vivo dentro da cabeça e pelos dedos nos teclados. meu derramamento é aqui. escondido. sem avisá-los, inclusive, idealmente (a timidez, gente, a timidez vez em quando supera tudo, menos essa exposição daqui)

eu posso te amar. e não sei se você algum dia vai saber. porque o mundo é bom aqui. no meu ninho. nos meus dedos. 

27.5.16

manda uma mensagem

outro dia me falaram. na verdade, faz é tempo. e eu perdi um pouco de carinho por muita gente. mas passou, porque eu tendo a tentar seguir e sacudir o mal estar pela vida em sociedade. enfim. me falaram dos grupos de whatsapp só de moços. homens ficam trocando. fotos de moças nuas. impressões sobre as moças que já viram nuas. impressões sobre seus times de futebol.

a gente fica ali. entre um jogo do vasco e um do botafogo. a gente é. nitidamente. tão importante ou tão gente quanto uma boa defesa. ou um enorme frango. a fala ainda veio com a informação de que comentaram que uma menina não era boa. de cama, digo. atire a primeira pedra quem nunca disse que deixou de sair com uma pessoa porque era ruim, eu pensei.

mas com esses acontecimentos eu tenho pensado. você tem quantas fotos de gente pelada no seu celular? que te entregaram elas em confiança? você mostra? a gente pode? onde a gente tá nisso? eu ando insistindo na banalização. não é banal a confiança que a gente deposita no outro na hora do sexo. não devia ser.

não estou dizendo aqui que sou santa. que nunca errei. mas a gente pode sentar e pensar. em estruturas. em por que eu fazer isso soa a uma subversão e um homem soa a uma manutenção de status quo. porque de qualquer jeito é uma ruptura e uma banalização da intimidade. e deveria ser combatido e não incentivado.

então. sabe o grupo? apaga. sai de lá. para com isso. percebe que é manutenção de estrutura de opressão, sim. respeita. acarinha. o outro. o que você quer ou quis perto. mesmo que por uma noite. a noite inteira. o dia. duas horas. uma semana. cuida sim. não expõe. não quebra o acordo. cada quebra de acordo é um passo pra toda essa coisa absurda que tá tão em pauta, que a gente chama de cultura do estupro. é a banalização do corpo do outro como coisa. não é coisa não. é gente.

pimenta

quando eu era pequena. tinha empregada em casa. é, eu sei. eu hoje em dia discuto isso e tudo. mas eu era pequena. e minha mãe tinha 4 filhos. e era separada do meu pai (que era rico, coisa que ele ainda é vez em quando, não sempre que é pra não enjoar, acho). e era isso. fazia parte do pacote, acho. enfim. eu conversava com ela. via televisão. conheço os filhos. na verdade, até hoje ligo nos aniversários vez em quando, apesar de não ter mais relação de trabalho. ficaram de alguma forma na vida da gente. mas esse não é um texto sobre relações de trabalho e o problema da herança escravocrata nem sobre casa grande e senzala e o brasileiro cordial. talvez seja perto disso.
um dia, numa conversa (que minha mãe jura que acha que eu era mais velha. minha mãe esquece que meu pai faliu eu tinha 12 anos. depois disso, não tinha empregada), ela começou a contar causos do bairro onde morava (engraçado, não lembro qual? sei que hoje ela mora em jacarepaguá. taquara). daí. um deles, que eu nunca, jamais, esqueci, era sobre uma moça que foi traída. e foi traída e contratou dois rapazes. e fez um vidro de pimenta. e os dois rapazes colocaram o vidro de pimenta na vagina da moça que teve um caso com o marido da primeira. e eu, pequena, perguntava “mas e o útero dela? levaram pro hospital? isso deve doer? e por que não mandou fazerem isso com o marido que traiu?” e desfiava mais mil perguntas. que deixaram ela sem graça, sem saber responder.
a violência está entranhada na sociedade da gente (falei que não ia comentar casa grande e senzala nem colonialismo. menti). faz escadinha. quem pode um pouco mais economicamente ou socialmente faz questão de sadismo com quem pode menos. a gente naturalizou isso e acha que faz parte. não faz. não deveria fazer. o colonialismo, dizem, é fundado na violência. a única linguagem que conhecemos.
a menina. que foi violentada por 30 rapazes. foi porque podem, porque estão um pouco acima. a menina. que levou pimenta na vagina. também foi porque a outra podia. estava um pouco acima. é tudo sintoma da mesma sociedade que se baseia na violência e não sabe andar depois dela. são histórias com 30 anos de distância. uma particular, até onde eu saiba, nem saiu no jornal que a moça teve seus órgãos reprodutores queimados por pimenta. é tão banal que não saiu no jornal. a violência pode ser filmada hoje em dia para ser mais banalizada. 
quero crer, porque sou das que busca copos meio cheios, que hoje em dia podemos ainda, apesar da tentativa de guinada a um não falar, discutir e falar sobre essa violência. tentar ao menos explicar que não. que não temos direito sobre o corpo das mulheres. de nenhuma mulher. que o corpo de cada uma é de cada uma, que não podemos violá-lo. e que isso não é e não pode ser banal.
quero crer. que 30 anos depois. preciso crer. que nós mulheres estamos começando a entender isso. que somos uma. que estamos juntas contra as violências que nos colocam por baixo de tudo. quero crer que a pimenta hoje não seria dirigida a outra mulher. que a luta é por todas. sem diferença. que a violência pode ser instrumento e não mais única linguagem conhecida.
eu até hoje tenho pesadelos com essa história da pimenta. e não foi comigo. não consigo sequer imaginar como seria se fosse comigo. quando é.