27.5.16

pimenta

quando eu era pequena. tinha empregada em casa. é, eu sei. eu hoje em dia discuto isso e tudo. mas eu era pequena. e minha mãe tinha 4 filhos. e era separada do meu pai (que era rico, coisa que ele ainda é vez em quando, não sempre que é pra não enjoar, acho). e era isso. fazia parte do pacote, acho. enfim. eu conversava com ela. via televisão. conheço os filhos. na verdade, até hoje ligo nos aniversários vez em quando, apesar de não ter mais relação de trabalho. ficaram de alguma forma na vida da gente. mas esse não é um texto sobre relações de trabalho e o problema da herança escravocrata nem sobre casa grande e senzala e o brasileiro cordial. talvez seja perto disso.
um dia, numa conversa (que minha mãe jura que acha que eu era mais velha. minha mãe esquece que meu pai faliu eu tinha 12 anos. depois disso, não tinha empregada), ela começou a contar causos do bairro onde morava (engraçado, não lembro qual? sei que hoje ela mora em jacarepaguá. taquara). daí. um deles, que eu nunca, jamais, esqueci, era sobre uma moça que foi traída. e foi traída e contratou dois rapazes. e fez um vidro de pimenta. e os dois rapazes colocaram o vidro de pimenta na vagina da moça que teve um caso com o marido da primeira. e eu, pequena, perguntava “mas e o útero dela? levaram pro hospital? isso deve doer? e por que não mandou fazerem isso com o marido que traiu?” e desfiava mais mil perguntas. que deixaram ela sem graça, sem saber responder.
a violência está entranhada na sociedade da gente (falei que não ia comentar casa grande e senzala nem colonialismo. menti). faz escadinha. quem pode um pouco mais economicamente ou socialmente faz questão de sadismo com quem pode menos. a gente naturalizou isso e acha que faz parte. não faz. não deveria fazer. o colonialismo, dizem, é fundado na violência. a única linguagem que conhecemos.
a menina. que foi violentada por 30 rapazes. foi porque podem, porque estão um pouco acima. a menina. que levou pimenta na vagina. também foi porque a outra podia. estava um pouco acima. é tudo sintoma da mesma sociedade que se baseia na violência e não sabe andar depois dela. são histórias com 30 anos de distância. uma particular, até onde eu saiba, nem saiu no jornal que a moça teve seus órgãos reprodutores queimados por pimenta. é tão banal que não saiu no jornal. a violência pode ser filmada hoje em dia para ser mais banalizada. 
quero crer, porque sou das que busca copos meio cheios, que hoje em dia podemos ainda, apesar da tentativa de guinada a um não falar, discutir e falar sobre essa violência. tentar ao menos explicar que não. que não temos direito sobre o corpo das mulheres. de nenhuma mulher. que o corpo de cada uma é de cada uma, que não podemos violá-lo. e que isso não é e não pode ser banal.
quero crer. que 30 anos depois. preciso crer. que nós mulheres estamos começando a entender isso. que somos uma. que estamos juntas contra as violências que nos colocam por baixo de tudo. quero crer que a pimenta hoje não seria dirigida a outra mulher. que a luta é por todas. sem diferença. que a violência pode ser instrumento e não mais única linguagem conhecida.
eu até hoje tenho pesadelos com essa história da pimenta. e não foi comigo. não consigo sequer imaginar como seria se fosse comigo. quando é.

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