31.5.16

conceitos

sobre diferenças na verdade. conceito pode partir de generalização, mas não é a mesma coisa. conceito é construído após análise, discurso, debate, construção. conceito não é tão vazio quanto parece. talvez seja difícil acessar um conceito sem conhecer o debate que o antecede. mas é pra isso que seguimos aqui. sendo acadêmicos chatos. tentando explicar. repassando. estudando. relendo. debatendo. tô aqui falando dos conceitos todos. com amigos. comigo. para poder depois explicar. repassar, sair do mundo da academia.

dito isso. o erro é meu e dos meus se um conceito é mal compreendido. é tratado como mera generalização. é tratado com raiva. com desprezo. o erro é meu e dos meus quando a intelectualidade é vista como um entrave a algo. quando nós somos o problema que atrapalha a vida. e não a chave que ajuda a entender.

deixa que o pensamento abra a porta. que o conceito te mostre outra forma de ver a vida. que as palavras possam ter mil significados. que a ressignificação te faça ver outros arco íris. deixa que a provocação da palavra te faça trilhar outro caminho e que isso seja bom. tão bom quanto falar com um amigo. quanto beber uma cerveja. quanto malhar ou ir na praia. deixa que o raciocínio e a dúvida te coloquem em contato com o que você não conhece. que o mundo seja maior. o mundo é sempre maior do outro lado, acredite. acredita que reler e tentar entender o ponto de vista de quem criou a teoria pode te fazer até seguir discordando. mas entender de onde veio. e entender é libertador. saber as regras deixa a gente vendo a estrutura do mundo. tenta ver. é meio como a escolha do neo. a gente quer a azul ou a vermelha? não precisa ver toda a estrutura do mundo. ninguém vê toda. mas é bacana saber que ela existe.

30.5.16

família

detesto família. não sei lidar. sou uma pessoa de amigos. aquariana, alguns diriam. chata, digo eu mesma. nem sempre tenho o que falar. nem sempre me sinto muito à vontade. mas era casamento do meu irmão. e nem sempre eu caso um irmão. alguns vão dizer que, com sete irmãos, isso nem é verdade. mas tergiverso. é meu irmão. e é caçulinha, sim. apesar de ele ser o mais velho, pra ele mesmo. mas é mentira. a mais velha sou eu. e caçulinhas são eles todos. pra vida inteira, amém. darei bronca, abraçarei e direi que são lindos. podem se acostumar, se não se acostumaram ainda. mesmo que bissexta, num desisti não desse papel. apesar do outro irmão ter dito "na verdade família pra você é só a nuclear. você ignora o resto, apesar de entender. tem mais ligação com os amigos"


voltei pro aquariana. e pior que é verdade o estereótipo aqui. os amigos que carreguei pro dia a dia. os que me conhecem o meu trabalho. os que eu seguro a mão se achar que precisam. os que eu não deixo de ver por nada. são meu porto seguro muito mais do que a minha família. vejam bem. eu gosto deles. eu só não tenho essa ligação atávica. eu acho lindo eles terem. enchem meus olhos de lágrimas com tanto carinho. eu percebo que o afeto entre eles e comigo é muito real. e eu quero poder retribuir. só não sei fazer isso. 

e daí eu que nem ia falar tanto. queria só dizer que. as diferenças nunca cessaram. mas elas são boas. e eu posso ser capaz de um amor que não é o que eles esperam. não é derramado. tátil. de riso frouxo e corpo aberto. essa não sou eu. eu acho isso lindo. eu admiro isso neles. eu vivo dentro da cabeça e pelos dedos nos teclados. meu derramamento é aqui. escondido. sem avisá-los, inclusive, idealmente (a timidez, gente, a timidez vez em quando supera tudo, menos essa exposição daqui)

eu posso te amar. e não sei se você algum dia vai saber. porque o mundo é bom aqui. no meu ninho. nos meus dedos. 

27.5.16

manda uma mensagem

outro dia me falaram. na verdade, faz é tempo. e eu perdi um pouco de carinho por muita gente. mas passou, porque eu tendo a tentar seguir e sacudir o mal estar pela vida em sociedade. enfim. me falaram dos grupos de whatsapp só de moços. homens ficam trocando. fotos de moças nuas. impressões sobre as moças que já viram nuas. impressões sobre seus times de futebol.

a gente fica ali. entre um jogo do vasco e um do botafogo. a gente é. nitidamente. tão importante ou tão gente quanto uma boa defesa. ou um enorme frango. a fala ainda veio com a informação de que comentaram que uma menina não era boa. de cama, digo. atire a primeira pedra quem nunca disse que deixou de sair com uma pessoa porque era ruim, eu pensei.

mas com esses acontecimentos eu tenho pensado. você tem quantas fotos de gente pelada no seu celular? que te entregaram elas em confiança? você mostra? a gente pode? onde a gente tá nisso? eu ando insistindo na banalização. não é banal a confiança que a gente deposita no outro na hora do sexo. não devia ser.

não estou dizendo aqui que sou santa. que nunca errei. mas a gente pode sentar e pensar. em estruturas. em por que eu fazer isso soa a uma subversão e um homem soa a uma manutenção de status quo. porque de qualquer jeito é uma ruptura e uma banalização da intimidade. e deveria ser combatido e não incentivado.

então. sabe o grupo? apaga. sai de lá. para com isso. percebe que é manutenção de estrutura de opressão, sim. respeita. acarinha. o outro. o que você quer ou quis perto. mesmo que por uma noite. a noite inteira. o dia. duas horas. uma semana. cuida sim. não expõe. não quebra o acordo. cada quebra de acordo é um passo pra toda essa coisa absurda que tá tão em pauta, que a gente chama de cultura do estupro. é a banalização do corpo do outro como coisa. não é coisa não. é gente.

pimenta

quando eu era pequena. tinha empregada em casa. é, eu sei. eu hoje em dia discuto isso e tudo. mas eu era pequena. e minha mãe tinha 4 filhos. e era separada do meu pai (que era rico, coisa que ele ainda é vez em quando, não sempre que é pra não enjoar, acho). e era isso. fazia parte do pacote, acho. enfim. eu conversava com ela. via televisão. conheço os filhos. na verdade, até hoje ligo nos aniversários vez em quando, apesar de não ter mais relação de trabalho. ficaram de alguma forma na vida da gente. mas esse não é um texto sobre relações de trabalho e o problema da herança escravocrata nem sobre casa grande e senzala e o brasileiro cordial. talvez seja perto disso.
um dia, numa conversa (que minha mãe jura que acha que eu era mais velha. minha mãe esquece que meu pai faliu eu tinha 12 anos. depois disso, não tinha empregada), ela começou a contar causos do bairro onde morava (engraçado, não lembro qual? sei que hoje ela mora em jacarepaguá. taquara). daí. um deles, que eu nunca, jamais, esqueci, era sobre uma moça que foi traída. e foi traída e contratou dois rapazes. e fez um vidro de pimenta. e os dois rapazes colocaram o vidro de pimenta na vagina da moça que teve um caso com o marido da primeira. e eu, pequena, perguntava “mas e o útero dela? levaram pro hospital? isso deve doer? e por que não mandou fazerem isso com o marido que traiu?” e desfiava mais mil perguntas. que deixaram ela sem graça, sem saber responder.
a violência está entranhada na sociedade da gente (falei que não ia comentar casa grande e senzala nem colonialismo. menti). faz escadinha. quem pode um pouco mais economicamente ou socialmente faz questão de sadismo com quem pode menos. a gente naturalizou isso e acha que faz parte. não faz. não deveria fazer. o colonialismo, dizem, é fundado na violência. a única linguagem que conhecemos.
a menina. que foi violentada por 30 rapazes. foi porque podem, porque estão um pouco acima. a menina. que levou pimenta na vagina. também foi porque a outra podia. estava um pouco acima. é tudo sintoma da mesma sociedade que se baseia na violência e não sabe andar depois dela. são histórias com 30 anos de distância. uma particular, até onde eu saiba, nem saiu no jornal que a moça teve seus órgãos reprodutores queimados por pimenta. é tão banal que não saiu no jornal. a violência pode ser filmada hoje em dia para ser mais banalizada. 
quero crer, porque sou das que busca copos meio cheios, que hoje em dia podemos ainda, apesar da tentativa de guinada a um não falar, discutir e falar sobre essa violência. tentar ao menos explicar que não. que não temos direito sobre o corpo das mulheres. de nenhuma mulher. que o corpo de cada uma é de cada uma, que não podemos violá-lo. e que isso não é e não pode ser banal.
quero crer. que 30 anos depois. preciso crer. que nós mulheres estamos começando a entender isso. que somos uma. que estamos juntas contra as violências que nos colocam por baixo de tudo. quero crer que a pimenta hoje não seria dirigida a outra mulher. que a luta é por todas. sem diferença. que a violência pode ser instrumento e não mais única linguagem conhecida.
eu até hoje tenho pesadelos com essa história da pimenta. e não foi comigo. não consigo sequer imaginar como seria se fosse comigo. quando é.

1.11.15

ressaca

o dia seguinte. ai. que dor de cabeça. que dor no peito. achei que eu nunca mais ia sentir isso. tem uma hora que a gente acha que se livrou. do aperto. da vontade de se cortar. da sensação de inadequação. não tava ali, de anfitriã do casamento alheio? as amigas confiando nela? o trabalho no doutorado saindo direito? mas voltou. enfim. ao menos Júlia e Suzana estavam felizes. isso foi bacana de ver. de perceber. sempre bom amigos felizes. acalma um pouco. pera, a ressaca.

– oi, Marta. não, não dormi direito. que foi?
– cara, fiquei preocupada. você sumiu da tua própria casa, porra!
– não podia ficar. desculpas.
– tem nada que pedir desculpas. onde você tá? eu enrolei a Júlia pra ela não perceber. mas ela sabe, ela não é idiota. liga pra ela depois e diz que você tá viva, sabe? o João lá, amigo dela também perguntou por você. mas ele foda-se.
– cara. não tava dando pra mim. desculpas. deu ruim.
– onde você tá? vou te buscar.
– então. vim pra minha mãe. não tô dando conta. não sei quando volto.

não tá dando. preciso ficar só. o João era um querido. mas visivelmente ainda pensava na ex mulher. eu não posso dar conta disso agora. eu mal dou conta do meu ex ainda. será que ele achou o mesmo de mim? não dou conta de nada. da minha vida. não posso dar conta do outro agora. queria algo simples. assim como esse encontro repentino da Júlia com a Suzana. como era rir com a Júlia quando elas conversavam besteira. mas nada andava simples. mentira. tinha coisas simples. a parte de trabalho andava simples. o bizarro é que nunca foi na vida. o problema é essa solidão absurda e insuportável que vinha de vez em quando. e estar no meio de tanta gente quando sentia isso era um problema. ela precisou sair da festa. ai, lá vem o telefone de novo.

– porra, Mariana!!!!
– ai, Júlia, desculpas
– fiquei preocupada, eu sei que você some, que foge, tudo. mas da sua casa, cara?
– não aguentei. era coisa demais que eu não sei fazer. que eu não sei ter. que eu não consigo criar.
– amiga, para de aumentar as coisas. era uma festa. de um casal de namoradas. só isso. que eu quis compartilhar contigo. porque você gosta de estar presente. não era pra você se sentir mal.
– gata. deixa. já passa. agora eu preciso ficar no casulo. mas eu tô bem. sem um puto, vou ter de entregar o apartamento, essas coisas, mas tô bem.
– como assim entregar o apartamento? por que eu não tô sabendo disso? e o pobre do João? convenci o menino a ir, Mariana.
– mas Júlia, ele tá recém separado. ainda tá com a ex na cabeça. eu não sei competir. ainda mais com um fantasma desses. a mulher era linda, inteligente, compreensiva, educada... não sei competir. até porque tenho a sutileza de um paquiderme. e eu não quis atrapalhar a tua festa com os meus problemas.
–...
– que foi?
– amora, tô indo aí. eu que me caso e você que surta. tô indo aí.


10.9.15

João
- não, Julia, não dá pra chamar mais gente.
- mas...

Julia estava querendo chamar cem pessoas prum quarto e sala. Entendo a vontade de comemorar e tal. Mas não cabe, cacete. E meio que passamos da idade. Sei lá, já é o segundo casamento. E meio de sopetão, não? Nem ia metade desse povo, também. eu podia relaxar.

- foi, amora, combinei de cada um levar bebida. Comida eu me encarreguei. Pedi ajuda pra minha mãe. Mas não inventei muito. Quiche, bolo, essas coisas com cara de chique e fáceis de fazer.
- tem a pecan pie?
- tem, claro. Acho que não tem nada vegano, tem problema? Posso inventar algo.
- a outra noiva é vegana, Mariana. Como assim?
- brincadeira, tem salada e uns salgadinhos que achei uma receita. Enfim. Fica tranquila.

Roubada. Tudo isso e Julia nem tinha visto do João. Suzana ficava encarnando em mim sempre que me via. Duas semanas puxadas essas. Porque concordei com isso? Fora curtir festa?

Marta ainda resolveu encher meu saco que não tem tema na decoração. Cansei de explicar que tem. Chama juntar trapinhos e chamar os amigos na casa da outra amiga que não gosta de bibelôs. Sem tema. Sem berloque. Se insistir, cubro tudo de purpurina. Carnaval. Único tema possível. A amiga dando a festa tem um mestrado para acabar, sabe? Doutorado, enfim.

- Mariana. Falei com João.
- oi? Como assim? Falou o que?
- nada demais, calma. Mas ele vai na festa. Você ainda quer que ele vá, não?
- sim. Não. Não sei. Cara. Ando tão fechada que acho que inventei ele pra ser inatingível. Enfim
- tá. Se vira. Atinge aí. Porque ele vai sozinho. E Mariana...
- que foi? Calma, tenho quinze anos e não sei fazer essas coisas.
- eu sei, flor. Mas obrigada. Pela festa.

interlúdio em inglês.

Hi. today I found an old letter from you. And decided to search you on the web. doing that, I found out that you died last year. and I cannot help but to feel guilty. for not keeping contact when you were still alive. I know, it's all a part of life. sometimes we can and sometimes we can't keep in touch. I moved. several times. your courses in Brazil stopped. we had our reasons, I'm sure. and the fact is. I think I never thanked you enough. for helping me be who I am now. for teaching me so much about art and alterity. with you I understood so much that I never noticed before. I will always cherish the day I met you at the MoMA. you wore your teacher's apron, as always. and I probably was using something plain. you helped me to see that it is ok to be eccentric. it is ok to try to do things differently. it is ok to try. sorry for not being everything you told me I could be. but I promise I'll keep on trying. and maybe someday. I can be as good a teacher as you were. you were inspiration. thank you.

10.8.15

casamento

– Porra, Júlia, mas casar?
– Ué, você bem sabe o que dizem: sapatão sempre casa no segundo encontro
– Mas Júlia, você era hétero até anteontem, calma, cara.
– Mas eu sempre quis casar.
– Tá, mas 1. você já casou, lembra? e 2. você conhece a Suzana faz dez anos. Dez anos. Em duas semanas tudo mudou?
– Mariana, você quer que eu diga que foi tipos reclame da band news? Porra, deu certo, sei lá porque, a briga por causa do Jaime serviu pra alguma coisa, sei lá.
– Ai, perdi mais uma...
– aff, você.

Nos abraçamos. Essa coisa de amizades que ninguém explica. Somos basicamente antípodas. Júlia diria que tinha a ver com o mapa da gente. Ia pegar e mostrar onde estavam as vênus. Que sei lá que planeta era domiciliado. Eu acho lindo. E até quero acreditar. Mas sobretudo, sei que amo Júlia, talvez mais do que se tivesse uma irmã em vez daquele bando de macho meio tonto que chamo de irmão. E que era isso. Júlia se atirava sem rede de segurança. Eu fico ali tecendo as redes. Segurando os outros vez em quando, vez em quando a mim mesma nas redes de segurança. Na verdade, verdadeira, depois desses anos todos, já entendi que uma é a rede de segurança da outra. Devia estar no mapa, certeza.

– Eu vou ser madrinha, ou é só juntar mesmo? Suzana andava dura e morando com a mãe, não?
– Pois é. E o meu aluguel subiu. E essas duas semanas foram perfeitas. Ela vai lá pra casa. O que eu penso é: se não funcionar como casal, sempre fomos amigas.
– A gente não é mais criança pra acreditar em carochinha.
– Tá, vou sair do palco, você é encarregada de organizar a festa e não me chatear. Semana que vem. E convidar João.
– hum...
– Dois, Mariana, vai me dizer que já desistiu do rapaz?
– Não entendi qual é a dele. Conversamos horas ali na Comuna. Nem te vi sair. Mas na hora de ir embora, foram só dois beijinhos e tchau. Depois ele me adicionou no facebook. Puxou papo um dia. Mas foi isso. Não esqueça que sua amiga pode ser bastante tímida. Sobretudo quando admira alguém. E eu olhei os trabalhos dele no perfil dele. Ele é bom.

Júlia ficou meio sem saber o que me falar e prometeu sondar o rapaz. Mas eu não tenho muita esperança, não. Quando a fase começou com falta de geladeira em casa, é pra ficar um tempo quieta mesmo. Esperando passar. E organizar o casamento das amigas. muito importante.

Estavam indo encontrar as outras amigas, e Júlia esperava que eu falasse pra elas as notícias. Nenhuma razão especial. Apenas queria ver a cena de fora e poder rir sozinha das caras de espanto. Acho super justo. Faria o mesmo. Agora fazia ainda mais sentido insistir no piquenique no Aterro – tá, piquenique ali é sempre divertido, começa a orquestra no fim da tarde e nem parece domingo mais, mas vocês entenderam – fazia luz e dava pra ver todo mundo. Iam Iara, Andréa e Marta. Júlia queria ver especialmente a cara da Marta. Que cantou ela a vida inteira e ouviu sempre um "não, minha orientação sexual não permite"

Pensando bem, é crueldade dela. Mas eu não tenho nada a ver com isso. Só quero organizar a festa pra ver se tomo coragem de falar de novo com João. E se ele concorda em ir.

23.6.15

embora

– Não, não sei porque estou falando.
– ...
– Claro que pode anotar. Anota aí: a moça era barraqueira, estava irritadíssima porque o problema dela não tem solução e te encheu a paciência. Desculpas, não tem nada a ver com você. É que, como você disse, não tem como resolver o meu problema, e eu preciso resolver.

Desliguei o telefone quicando. Mas o que não tem remédio, remediado está. Amanhã compro uma geladeira nova. Melhor desistir de dar murro em ponta de faca com essa. Agora tinha de sair pra comer. Júlia estava devendo uma desde aquela ida pra Madureira. Jaime chamava o rapaz. Júlia já tinha ido morar com ele, desistido e saído aos berros por Botafogo quando percebeu Jaime dando em cima de Suzana. Pobre Suzana. Ficou ali, no meio do fogo cruzado entre um galinha e uma eterna romântica. E sem nenhum interesse pelo Jaime. Suzana detestava o tipinho remanescente dos anos 80. Além de ser lésbica, o que meio que inviabilizava a cantada, e tornava ridículo Júlia zangar com ela. Ainda bem que ela percebeu logo isso, e só brigou com o pateta do Jaime. Júlia estava sempre com precisão de uma história de amor. Não era de sexo. Pior é que eu ainda saio com o tal do Marcos. Não, não namoramos, nem pretendo. Ele acha graça do meu trabalho, eu acho o dele mecânico. A gente meio que não se entende fora da dança ou da cama. Mas ele é ok. Não sai cantando minhas amigas na minha frente. Apesar de ser mais do que sabido que não temos nenhuma exclusividade. Espero.

Enfim. Seria bom pra Júlia também. Sair de casa, digo. Espairecer. Vamos tentar.

– Oi, gata, geladeira aqui quebrou, posso te convidar pra jantar?
– Bonita, menor saco de sair, quer vir aqui em casa?
– Puxa, eu queria ver gente, não rola mesmo? Estou enfurnada nos livros faz dez dias escrevendo essa joça.

É, eu joguei a carta da moça estudiosa. Funcionou. Júlia veio comigo comer hambúrguer hipster. Pra quem não queria sair, achei até que se esforçou. Uma das coisas do hambúrguer hipster é que além de ter um molho de wasabi dos deuses no sanduíche, tem muito moço interessante comendo ele. E uns drinks bacanas. Mas sobretudo os moços. A maioria deve me achar uma estranha de fora da galera e tals. Mas é só procurar a minha galera. Enfim. Júlia chegou.

– O Marcos me ligou vindo pra cá.
– E?
– Acho que cansei, amora. Falei pra ele isso. Ou acho que falei. Não sou boa em falar isso. Nem em ouvir isso.
– Eu sei, te conheço, Mariana. Mas você tá bem? Chamei a Suzana. Não quero que ela ache por um segundo que me afasto dela pelo merda do Jaime.
– Tadico, ele nem era um merda completo. Só um galinha completo.
– Aff você. Mas o Marcos, cabô?
– Cabô, vim procurar um hipster de cachinhos.

Júlia riu. As pessoas diziam que era engraçado. A forma direta de falar que eu tenho. Nunca entendi. Eu só falo, mas ok, se diverte as pessoas, melhor. E eu já tinha visto um hipster de cachinhos. Faltava só ele me ver.

Júlia sempre achava graça quando eu tentava flertar. Desengonçada, ela dizia. Mas funciona pra você, ela dizia. Júlia queria o novo amor, né? Eu sempre tive isso de só querer mesmo um rostinho bonito. A errada sou eu. De não querer o par quase nunca. Os livros chateiam menos, eu disse a ela. Júlia riu e perguntou se o da vez era aquele ali de olhos claros, pegando cerveja no balcão. Era. Ela ficou roxa, vermelha, azul. Caiu na gargalhada. Foi no balcão. Abraçou o rapaz e trouxe para a mesa. Por alguma razão a cretina conhecia ele faz anos e nunca tinha lhe ocorrido me apresentar.

– Prazer, Mariana
– Prazer, João
– Agora que eu estou tentando entender porque nunca apresentei vocês. Não dou cinco minutos para estarem falando de coisas que desconheço sobre poesia e eu não estar aqui presente. E eu estarei feliz.

Era verdade. Júlia calou. Apesar do constrangimento da fala dela (lembrar de não dar cerveja demais pra Júlia, lembrar de não dar cerveja demais pra Júlia), a conversa foi bacana. Quando eu olhei de novo, ela tinha ido embora com Suzana. Cara. eu nunca tinha pensado nas duas assim. Mas ok.

5.2.15

escuta

– Oi, você tá aí? (pergunta idiota, se atendi estou, resta saber onde ela acha que é o aí)
– Em casa? tô, tô sim, por que?
– Nada, deixa, depois eu falo. Deixa.
– Não, porra, começou a falar, acaba. Quer vir aqui? Quer que eu passe aí? O que você quer?
– …


Duas horas depois, aqui estou eu, indo pra Madureira no trem. Ainda não entendi exatamente como Júlia me convenceu a isso. Parece que tem o Paulinho da Viola na história. Não sei. Na verdade, parece que tem um surfista na história. Um surfista portelense que mora em Botafogo. Eu sei. Que roubada, meus amigos, eu me meti. Vou a Madureira segurar vela. De repente o surfista portelense tem um amigo mangueirense. Ou sei lá, Paulinho descobre que eu sou a mulher da vida dele. Não vai acontecer. Só vou gastar uma fortuna de táxi pra voltar. Porque de madrugada, andar até o ônibus dali da quadra não vai rolar. Já tentei. Vamos ver. Falta só uma estação. Acho que vou comer aquele angu ali da esquina antes de chegar na quadra. Mal almocei pra dar tempo de vir aqui fazer a boa ação do século. Mentira, só tô com fome mesmo. E sempre tive vontade de comer aquele angu, e nunca tive companhia. Hoje vai. Júlia não para de falar do rapaz. Jaime, ele chama. Um surfista chamado Jaime e portelense. Onde a Júlia arranjou esse ser? Falta me dizer que tem dragão tatuado no braço e eu acho que ela pegou o DeLorean pra 85. Jaime trabalha na loja do pai. Acorda cedo e pega umas ondas antes de ir pra trás do balcão. Mas dia de quadra da Portela ele se permite não ir no mar. E hoje, pelo que entendi (já fui melhor nisso) tem escolha do samba com direito a palhinha do Paulinho. Não, Jaime não tem um amigo mangueirense. Não aqui, não hoje, parece que sou a única pateta não portelense no recinto. Minto. Júlia até o ano passado jurava que era da Vila. Mas Júlia sempre teve esse péssimo espírito zellig. Ano que vem sai com um cara do Salgueiro e muda de novo. Ou com um que não curte carnaval e acaba suas noites na Matriz, na Fosfobox, sei lá. Eu não sei mais que boate que tá na moda. Na verdade, eu tenho saído muito pouco de casa. Não faço ideia do porquê.

– Ei, vamos!

Tão ocupada em tentar entender as coisas, quase continuei no trem. Júlia topou meu angu. E enfim. chegando na quadra tudo melhora. Achei fofa essa reforma das casinhas. Nossa, fazia muito tempo que eu não vinha. Nossa, por que eu ando tão enfurnada? Saudades sair pra dançar. Jaime tem mesa. O amigo dele é compositor de um dos sambas. O amigo dele não é surfista. E samba de um jeito que meio que faz com que eu esqueça o meu nome. Num tem coisa mais bonita do que homem que sabe sambar. Tá. Capaz de que eu agradeça a Júlia pela noite. Jaime é bacana. Melhor que a encomenda. Sabe falar. Foi trabalhar com o pai porque curte surfar e samba mesmo, não quis grandes vôos na vida, e enfim. Nenhuma razão pra julgar isso. Tem conforto material mínimo. Viaja quando pode, faz o que gosta no resto do dia. Mexe comigo que escolhi um trabalho que não me deixa nem vir sempre aqui. Só posso rir sem graça. Ok, entendi Jaime. Só tenho de avisar a Júlia que Jaime não entendeu a monogamia. Porque ele vai cantar qualquer ser de saias que se aproximar dessa mesa. Chamei o Marcos, amigo dele, pra dançar, pra ver se ela entende isso daí. Perto da bateria. Onde nada, nadica fala mais alto que o corpo da gente.
nunca tive problemas em pegar ônibus de noite. pensei. e fui. as meninas ainda perguntaram se eu não queria carona. no táxi? não, deixa. o ônibus me deixa em casa. 3h30 da manhã. mas ok. ônibus vazio. eu nunca achei ruim. sento do lado do trocador. vou conversando (tenho mania de fazer amizades, sabe?). maquiagem meio borrada, já. fim de noite, né? era uma rotina legal. que só era possível porque efetivamente eu morava na frente do ponto de ônibus. não sei se eu andaria uma quadra sozinha às 4h. mentira. eu andaria. eu pegava ônibus pra voltar de s. cristóvão. não, eu nunca contei pra minha mãe. se você contar eu digo que é mentira. pra minha mãe eu ainda sou a menina careta e cdf que nunca tirou uma nota abaixo de 8. não adianta eu ter sumido dias. e chegado em casa bêbada com uma dúzia de amigos bêbados e dormirmos todos na sala. então, enfim, de repente pode contar que eu voltava de ônibus sozinha esse tempo todo. ela não vai acreditar. hj em dia eu pego táxi por preguiça. cansei de andar de madrugada. mas ó: outro dia, saindo de botafogo, o táxi não passava. rolou entrar no ônibus. eu tava com uma amiga. ela tava meio aflita andando os quarteirões que separam minha casa atual do ponto. eu não. só fui assaltada uma vez na vida. plena ipanema. de dia. inferno. eu sempre andei na rua sozinha. indico, aliás. é bom esse momento em que ninguém quer falar com você. de madrugada as pessoas estão muito cansadas pra puxar assunto. e a rua tá escura. é interessante. eu gosto das ruas de madrugada.

29.12.14

Senta

- Não João. Senta, me escuta. Não. Não tô discordando de você só pra discutir. Não. Não deixei de gostar de você porque não concordo. João. Ouve. Por favor. João. Eu não acho isso porque não li as coisas certas. João. Não esquece que a gente estudou junto. Que a gente nunca parou de estudar. Ouve, João. Eu discordo só porque sou sujeito João. Porque apesar dessa nossa vida que cansa de ser entrelaçada e grudada existir, eu existo antes e depois de você. Nai só durante. João. Eu sei que você não percebe. Eu sei que você acha que é desamor. João. Não é. Eu te amo mais do que um dia vou poder explicar com palavras. Não João. A gente não é um só. Eu não sou radical. Você pesquisa isso, devia usar melhor as palavras. João. Eu só sou. E em si isso carrega diferença. João. Escuta. Entende, João. Discordar também é amar. Deixar o outro ali, naquela alteridade toda e apoiar isso também é amar. Não tentar manipular o outro pra mudar. Entender o limite do outro João. Sim. É o meu limite. Eu sei que é o seu. Posso conviver com isso. Você pode?

8.12.14

20 anos


Aos vinte anos a gente usa flor nas costas. A gente sabe onde tem aquela festa bacana na praia, puxando energia do poste pro som. A gente fica na praia desde de manhã até essa festa começar. Porque aos 20 anos a gente não tem obrigação. Quer dizer, a gente já paga as contas. Mas não tem de voltar pra casa quando o sol se põe porque o filho tá cansado, e aguenta não dormir e ir trabalhar no dia seguinte. Aos 20 anos nossos fígados são imbatíveis.

Agora, quase fazendo 40, eu não sei mais onde é a festa. E se vou pra praia, mesmo sem ter filhos, volto quando o sol se põe pra dormir, porque a lombeira me consome as energias. Aos 20 anos a gente é sexy. Porque não tem nada mais sexy que a pele de uma pessoa de 20 anos. Aos 20 anos tem um brilho nisso daí.

Aos 20 anos a gente chama as amigas e vai lá pra festa e paga mico dançando até o chão e caindo no chão. E ri disso como só aos 20 anos a gente consegue. Porque, a pouca idade nos ensina, isso não tem nenhum problema. E a gente vai lá e continua achando que tá dançando pra pegar o gatinho que (não) sabe tocar o saxofone. Mas aos 20 anos isso não tem a menor importância.

Em algum momento a gente cresce e essa leveza vai se desfazendo. E a gente vai achando que mesmo no fim de semana a gente tem de saber o que vai fazer. E que a gente não pode cair no chão dançando. Ou não pode paquerar o rapaz porque ele toca mal o saxofone. Ou precisa resolver umas paradas de trabalho no domingo. Eu queria uns dias. Só uns dias. Uma máquina do tempo interna. E ser capaz de voltar pra calma e pro tempo dos 20 anos. Pra andar por aí de canga e achando graça do nariz da amiga com espinha. Pra rir três dias com as coisas mais improváveis. E não achar que não posso.  Envelhecer é perceber os limites.

10.11.14

de fora

Mariana conhecera Celso por acaso. Era amigo de amigos de amigos em uma festa. Cismou com ela. Veio falar. Ela achou graça daquele cara meio feio, meio desajeitado, totalmente hippie de classe média do Rio de Janeiro cismar com ela. Mas ok, deu papo. Ela ainda não tinha se acostumado com esse tipo da zona sul do Rio. Vinda de Minas, ainda era estranho pra ela. Não era bem um tilelê. Enfim.

Celso a fez rir aquele dia. E ela foi levando e continuou a sair com ele. Porque rir era algo muito bom. E aprendeu com ele a ir nas cachoeiras e a fumar maconha. Burra velha, nunca tinha fumado. Era uma boa menina, tinha estudado e trabalhado desde cedo. Não tinha tido tempo de relaxar. E Celso deixava ela relaxar. Era bom ficar ali naquele apartamento no Horto. Meio caindo aos pedaços o prédio. Mas uma delícia o apartamento. Fresco. Com vista pro verde. Perto dos bares. Enfim.

O que sucede é que de repente em menos de um ano Mariana se mudou. E agora aquele apartamento era dela também. A vista. O Horto. Tudo dela também. Fizeram união estável. Mas os planos eram de casar com festão um dia. De preferência num sítio. Sem sapatos (olha o que não fazemos por amor) nem maquiagens.

Enfim, era verão. primeiro fim de semana de horário de verão. E Mariana tinha combinado com amigas de ir ao bar. Já estava bem irritada de ter se inscrito nesse seminário sem ver a data. E agora não podia faltar. Ia de manhã com um casal de amigas. Que coincidentemente eram amigas da Joana, amiga de Celso. Depois Júlia e Carol iriam direto pro bar encontrar Beta e Mariana passava em casa pra resgatar Celso. Parecia um plano.

Acordou cedo resmungando. Tentou não acordar Celso. Sem sucesso. Ele, sempre bem humorado, falou que achara ótimo, ia tomar café fora e subir pra cachoeira logo cedo. Ela lembrou ali porque, apesar da zona, apesar da lentidão na vida, tinha casado com ele. Era porque ele tinha esse bom humor. Porque ele tinha esse sorriso mesmo quando irritado. E isso melhorou o humor dela pra ir pro seminário. E foi. O dia inteiro ouvindo sobre novos rumos do urbanismo. Pra onde vão as grandes cidades. O que as megacidades podem fazer para seus habitantes. Etc, etc, etc. Ela só olhava o sol lá fora.

Saiu, as meninas foram correndo pro bar, parece que Beta já tinha saído, e tudo era mau humor pra ela. Melhor assim. Chegou em casa e aquele futum de maconha não enganava ninguém. Na verdade, nem o porteiro. E eles moravam no terceiro andar. Sem elevador. Celso estava com um amigo. Bruno. Simpático o rapaz. Mas pera. Era o nome do ex da Joana, não? Era, claro que era. Bruno no banheiro e Mariana tensa pensando se daria algum problema. Celso tinha certeza de que não. A história dos dois era complicada, mas os dois eram bem educados e afetuosos com os amigos o suficiente para serem adultos.

Mas não, não ia avisar nada antes. Chegaram, entre os primeiros ainda. Celso, cansado, com lombeira, ficava deitado no colo dela. e ela não conseguia nem se irritar. Aquele cara sempre fazia ela rir. E quando Joana chegou. E todo o auê se fez. Mariana entendeu. Que era aquilo mesmo. Que ainda se olhavam como não deviam, que bruno ainda percebia cada vez que a alça da camiseta de Joana caía do ombro. Que Joana sabia cada vez que Bruno acabava o copo de cerveja. Que eram parecidos demais para capitularem e serem felizes juntos.

E olhou pra seu colo. E ficou feliz. Da possibilidade de poder ter capitulado. De achar que o problema não era dela se ele tinha resolvido mudar o programa dele. E como era bom. Só estar junto.

9.11.14

Sunga?

Bruno acordou, cedo como sempre. Saiu de bicicleta, como sempre. Hoje ia subir as paineiras, decidiu. Era necessário não deixar o corpo parado. Era necessário ser saudável. Era verão. Precisava aproveitar o sol.

Enfim. Bruno não gostava de se entregar. De fazer nada. E saiu de bicicleta. Sozinho. Quando estava chegando na jardim botânico, encontrou Celso, que o chamou pra cachoeira. Um dia, que tinha largar o exercício? Ver gente, assim, sem combinar?

Vamos, pera, preciso só guardar a bicicleta. Não, queisso, deixa ali em casa, é mais perto. Vai, sai, guarda a bicicleta, sobe a trilha, toma banho. Desce, vai pra casa do Celso, ficam ouvindo música e fumando maconha como quando estavam na faculdade. A namorada do Celso chega. Bruno não conhecia. Bonita ela. Mariana, chama. Mariana quer jantar (sim, conseguiram ficar nessa a tarde inteira, só comeram sorvete na larica). Na verdade, Mariana quer bares. Combinou com as amigas.

Claro, vamos todos, é aqui perto. Na verdade, não. é em Copa, mas racha um táxi, vai pela Lagoa, chega num minuto. Mariana insistiu para que comessem algo antes de sair. Ficar com dois homens crescidos passando mal de maconha e álcool na rua era demais também.

Foram. Quando chegaram, 3 das amigas já estavam. Faltava gente ainda, que foi chegando aos poucos. Bruno estava feliz. Fazia muito que não relaxava assim. De repente a Joana tinha razão, pensou. De repente as coisas não são tão obrigatórias.

E todos gritaram. Bruno olhou e abriu um alçapão debaixo dos pés dele. Joana. Magra. Com aquela cor de quem saiu da praia. Os cabelos com as pontas queimadas e o sorriso escancarado de sempre. Todos reclamando que ela tinha feito o charme todo pra no final ir pra lá. Tentou muito fingir que não tinha passado a véspera fuçando a vida inteira dela nas redes sociais. Nunca soube se conseguiu.

Ela começou a falar. Como sempre tinha de ser a dona do assunto, a dona da mesa, a mais esfuziante e divertida criatura gerada sob o sol do Rio de Janeiro. Vez em quando ele perguntava se isso não a cansava. Essa obrigação de desejar o tempo todo. De ser tão livre assim. E livre do que, ele se perguntava.

Pra variar, trocou de trabalho. Pra variar, ele reclamou. Pra variar, ele ouviu que pedras que rolam não criam limo. Bem feito. Quem mandou revisitar dr?

Os dias eram difíceis sem ela. O ano inteiro. Mas era aquilo. Quanto desencontro. Quanta incapacidade de comunicação. Mas amigo. se você visse. A hora em que ela debruçou pra pegar a cerveja. E o cantinho do decote. Ali, do lado do peito, sabe? Ai....
biquíni

definitivamente o verão tinha chegado. praia até tarde. andar de biquíni nas ruas. só o short e a camiseta regata rasgada por cima. com aquela cara de quem se sente ainda com 15 anos. enfim.

Joana não tinha mais 15 anos. Fazia um tempo, na verdade. Mais ou menos uns 15 anos, na verdade. Mais até. E Joana, apesar de adorar esse elan do verão andava com vontade era de ficar em casa no ar condicionado. Mil convites. Praia. Show. Circo. Teatro. Cinema. Bar. No verão do Rio o pecado é não sair. É não ser sociável. 3 meses em que a ordem é a rua. 3 meses em que é muito difícil se concentrar no trabalho. Até porque o calor é insuportável e só se quer uma praia, uma cachoeira ou um ar condicionado.

Praia. Voltemos. Joana tinha ido encontrar com Márcia, que morava ali perto. Só um fim de tarde. Só pra tirar o mofo. Enfim, tinha quinhentas coisas pra fazer. Não podia demorar. Só dez minutinhos.

Nunca são. E ela sabia, na verdade. Os dez viraram vinte. Uma cerveja então. Duas. O sol se pôs. Outras amigas ligaram. Márcia fez charme, disse que não queria. Mas acabaram as duas tomando uma ducha na casa de Márcia e indo encontrar o resto do povo no bar.

Uma mesa grande. Na calçada. Joana chegou resmungando que podiam ter escolhido um bar com ar. Que custava, gente. De repente gelou. Alguma boa alma podia ter informado a ela que o Bruno estaria por ali. Ok, ela não o via fazia quase um ano. Ok, tinha acabado tudo entre eles de forma quase normal. Ok pra tudo. Mas porra. A galera sabia. Que ela ainda não sabia lidar. Ela nunca tinha voltado a ter ele no facebook. Não por esquecimento. Vez ou outra ela entrava no perfil dele. Pra sentir aquela dorzinha. Aquele aperto. Ela sabia. Ou imaginava, tinha imaginação fértil. Que ele fazia o mesmo.

Enfim, foda-se. Agora não tinha o que fazer. Sentou. Pediu um copo. Falou do trabalho. Bruno de repente se assustou e mandou: "mas cacete, Joana, mudou de novo? não sabe parar quieta, não?" Era retórica a pergunta. Joana repetiu a mesma resposta de sempre "pedra parada cria limo, Bruno".

Daí. O frio na barriga saiu. E ela lembrou. Que Bruno era pedra parada. Que era esse o problema. E esse era um problema incontornável, não? Limo escorrega.

 Joana era irrequieta. E irritante. Vez em quando era o próprio verão na sua inconstância (como explicou uma vez a um amigo gringo: o verão no rio chove. a não ser quando faz muito sol). Não deveria nem estar ali. Tinha trabalho pra fazer. Mas quis ver o mundo de fora. Porque precisava daquilo. Porque queria aquilo hoje. E não, não podia ser amanhã. Bruno, ela lembrava bem, saía porque era obrigação. Como mais uma das tarefas daquela vida de tarefas intermináveis. E ela achava tarefas coisas insuportáveis.

Lamentava tanto desencontro, como outras vezes lamentou. Porque aqueles olhos azuis.... Ai aqueles olhos azuis....

7.10.14

O outro lado do espelho


é isso, pensou Camila. O espelho não mente. E ela estava mostrando a idade. O corpo não era o mesmo dos 20 anos. Ainda queria ser a mesma dos 20 anos. Ainda não entendia o que era o tal do envelhecimento. Ainda tinha os mesmos sonhos juvenis de estudos e viagens e de não ter amarras. Era isso que chamavam de adolescente nela. Ela ficava meio irritada. Porque era apegada a não ter envelhecido. A ter brigado com o tempo dentro dela. Ter decidido que os erros e tristezas não definiam ela. E ficava brutalmente triste quando diziam "ah, mas Camila não cresceu". Camila cresceu, sim. Envelheceu e sentiu cada ressaca. Cada susto de saúde. Cada separação. Aquela casa nas costas. Cada amiga precisando de ajuda as três da manhã. Cada parente internado e ela de responsável. Mas a escolha era antiga. Essa de continuar. 

enfim. Ontem tinha saído com a família. E queria só trocar de corpo e de vida hoje. Exaurida pelas conversas e pelas loucuras familiares. Exaurida pelo calar. Hoje queria sair e falar. Pelos cotovelos, como era sua especialidade. Sem pensar se Roberto existia ou não. Roberto andava dando defeito e ela não tinha assumido nem namoro pra ter de aturar defeito de homem. 

enfiou um short (ouvia Joana falar "mas Camila, não dá mais pra sair de pernas cobertas?") e uma camiseta e chamou as amigas no messenger. Nunca era fácil decidir onde ir. Pra acabar sempre na praça, em botafogo ou em último caso na lapa. 

enfim. Foram a botafogo dessa vez. Percebeu que tinha bebido muito quando subiu as pernas na cadeira e acendeu um cigarro. Essa personagem dela mesma era engraçada, pensou. Livre. E conversaram até o raiar do dia, que vez em quando amigas tem assunto até dois dias se passarem. Claro que nesse tempo todo o celular não foi verificado.

pegou um ônibus pra voltar, já era dia. Sentada na janela, na cadeirinha alta, mil mensagens de Roberto. Tentando consertar o defeito. Desligou o telefone.

chegou em casa pensando que andava com saudades de dançar.

28.5.14

Frio

aquele frio era desagradável, úmido. as roupas nunca secavam. chuvinha que não parava fazia dias. só queria dormir e ficar em casa. nunca mais ter de sair. assim. dormindo, feliz. mas enfim. a vida não era assim, e Alice tinha de sair pra resolver uns pepinos. não era trabalhar, porque era sábado. mas tinha de ver coisas da casa, fazer feira, limpar a casa... inferno essa coisa de ser adulta.

feira na chuva. uma espécie de tristeza em si. mas depois ia valer a pena a comida fresca em casa (era o mantra). passou no mercado, comprou carne também. almoçou pastel, pq né? até amadurecer tem seus limites. chegou em casa e lembrou. que na véspera tinha dado uma de ermitã e lido e ficado entre internet e livros até de madrugada. com cachaça. a casa nem tava o caos. era pouco pra fazer, grazadeus. lavou roupa. limpou banheiro. arrumou cozinha....

celular apitou. eram as amigas perguntando cadê a sumida. sabiam que andava enlouquecida com trabalho e estudo, essas coisa, mas... concordou. a casa estava habitável, decidiu ir ver rua. novidade nem tinha pra contar, mas né?

entrou no banho. percebeu que não tinha feito a unha naquela semana. gente. como assim? tava surtando, só pode. deixa pra lá agora. abriu armário. quanta cor. aquilo sempre a acalmava. ver as cores. escolheu um vestido. uma meia calça (tá frio, poxa), um sapato. se maquiou e foi. as amigas estava esperando no bar de sempre (que sempre mudava, mas isso é outra história).

estranharam as unhas. perguntaram que passava. ela só quis saber de pedir um hambúrguer. tava com fome. não, não tinha nenhum cara. vez em quando achava que as amigas, hoje casadas, queriam saber dela e de joana, que não tinha ido, só pra viver vicariamente. não era um interesse por ela, mas pra poder ainda sentirem as borboletas. ela entendia. tinha sido casada por muito tempo. tinha ficado em casa. tinha sido monogâmica. enfim. não, agora tava vazia de tudo.

mas não tem saído pra dançar? e sua vida de adolescente? alice riu. de adolescente a vida tem nada. adolescente não tem amanhã. ou só tem amanhã. alice tinha o passado ali todo nas costas. o presente todo pra cuidar. roupas pra lavar. contas pra pagar. enfim. nada adolescente. vez em quando tinha e podia não acordar cedo. hoje nem tinha sido o caso.

a cerveja e o hambúrguer chegaram. a conversa continuou e alice fez um pedido: pra estenderem a noite. pra falarem com os maridos e mães e o que seja. pra poderem um dia saírem todas de adolescentes. como quando tinham 20 anos. sem futuro. sem passado. sem contas. sem nada. elas iam ver. que vez em quando é libertador. fingir que a gente é livre. achar que a gente é livre. porque essa de ser adulto e se perceber preso a tanta coisa. essa é triste pra cacete.


29.4.14

escuro

aquele cantinho escuro era só dela. era confuso. era escuro. mas era dela. as pessoas não entendiam aquele prazer em voltar pro cantinho escuro. os amigos nem falavam nada, vez em quando. ela ficava no quartinho escuro. ela brigava com quem tentava entrar.

o cantinho podia existir por dias ou semanas. meses não. ela não se dava a esse luxo. tinha a palavra. depressão. mas novamente. ela não se dava a esse luxo. a avó, quando ela era pequena, lembra bem, ficava até 4 semanas sem sair da cama. sendo lavada. sem acender a luz. lembra da primeira vez que viu. depois trocavam os remédios. e só se repetia a cena uns 2 anos depois. depois a avó começou a fazer análise e os remédios estabilizaram mais.

vez em quando queria se largar no sofá. ou fazer algo drástico. que dessem os remédios. os remédios parecia que melhoravam tudo. mas na verdade, não faria nunca. aprendeu desde cedo que não faria como a avó. que quem tá em volta também sofre com aquilo. e ia indo pra frente. porque os outros importam.

tem uns dias em que o mundo está insuportável. e parece que esses outros não existem. e daí. ela para. entra no cantinho. chora o mundo. lembra de todos os outros. e tenta sair do cantinho. porque sempre tem os outros. e eles sempre vão estar ali. aparecendo. estendendo a mão. falando asneira. sofrendo também. e é em frente. é ali, com os outros. que tudo importa.

23.4.14

ilha


Alice passou a infância naquela ilha. O pai tinha uma casa ali no canto, sabe? Agora voltava sempre que podia. A casa do pai era meio caindo aos pedaços. Quase uma casa fantasma. Enorme e vazia. Ela ia por vezes sozinha. Por vezes com amigas, ou com algum cara com quem estivesse saindo. Era o caso. Mas era estranho. Porque se conheciam fazia pouco, e Cláudio meio que tinha se convidado. Ela queria estar sozinha.

Mas tudo bom, também. Ele era bacana. Ela também não podia ficar nessa de nunca mais deixar ninguém ir ali. Enfim. Era hora de abrir alguma porta, essas coisas cafonas de autoajuda e tals. Depois, era só um dia sozinha com ele. No dia seguinte chegariam os amigos. Nem um dia. Chegaram no fim da tarde, começo da noite ali. Ele estava com frio e não parava de perguntar que ideia de jerico era aquela de ir pra Angra naquele frio. Ventava. Não tinha aquecedor. Era úmido pra danar.

Alice riu. Angra no frio era melhor. Era só dela. Era sem multidão. E a multidão de Angra é das coisas mais desagradáveis. hordas de pessoas disputando pela melhor lancha, o biquíni da moda, o corpo mais em forma. Ela não se sentia muito confortável. Na chuva, não. Era ela a maluca que pegava o barco na chuva. que chegava encharcada na ilha. Que punha um moletom velho (e só em Angra ela se vestia largada assim) e ficava lendo naquele salão enorme. Frio com o vento entrando, já que nenhuma janela fechava direito.

Cláudio tentou. Fez jantar. Lavou tudo. Arrumou a cozinha. Alice na verdade continuava incomodada com ele ali. Acabou de jantar e fez o velho ritual da vida. Um chá. Um livro. No vento. Na varanda. Cláudio riu. Percebeu que era um intruso ali. Na verdade, nem sabia muito bem explicar porque tinha decidido ir na véspera, não com o resto do povo. Com Joana, sua amiga. Sabia que Alice tinha feito ele voltar a pensar em sair com alguém. Sabia que queria estar com ela. Meio que sabia porque tinha ido. Mas percebeu, que não era idiota, que estava ali ocupando um espaço estranho. Que de certa forma ela não queria ocupar. Simplificando, ele forçou a barra. Daí tanto cuidado com o diacho da cozinha. Com camarões (ela adora frutos do mar, inda mais na ilha). E ele queria conhecer Alice. E entendeu que de algum jeito aquilo ali também era ela. Um lado meio errado dela.

Olhou pra ela encolhida naquele sofá na varanda. Como se tivesse sei lá, cinco anos. Esperando alguém ali. Pegou um chá pra ele também. Um livro. Sentou ao lado dela. Cuidadosamente sem invadir o espaço. Alice olhou. Riu dele tentando ser invisível. Daquele tamanho todo. Se aconchegou nos braços dele. Percebeu como ele era confortável. Dormiram ali. Acordaram com os amigos berrando felizes com o sol brilhando no mar. Ainda do barco ao longe.